domingo, 23 de outubro de 2011

Negrita Santa



...mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da Republica Dominicana...

Ferreira Gullar, Cantada.



*foto Eduardo Quadros.



16 de outubro foi aniversário de Oscar Wilde, e meu também. Este ano a data passou sem a festa bienal que costumo oferecer a Wilde, aos amigos e a mim, na qual emagreço alguns quilos e mobilizo a família - seja ela qual for - correndo na preparação dos canapés, das pizzas uruguaias e outras iguarias, os convidados também correm quando sirvo chá amargo ao esquecer que o resto da humanidade usa açúcar nas bebidas.


Todo ano, com festas ou sem elas, Carol e eu temos um "presente perpétuo" que não é o conceito de Guy Debord mas sim um módico charuto Titan, um puro estadunidense, recíproco respectivamente em junho para ela e em outubro para mim.Tudo começou com Paulo Flores, ao concluirmos a escola de formação de atores da Terreira da Tribo e encenar nosso primeiro Brecht, ele disse que a tabacaria da peça sem charuto não era tabacaria, eu disse veementemente que não iria fumar charuto "em cena" pois ficaria viciada "em sério". Fui tão veemente e firme que, por fim, fumava até nos entreatos, nas coxias. Quando as duas nos demos conta já estávamos no dilema do ovo e da galinha, não sabíamos o que vinha primeiro, a peça ou o charuto. Improviso, esquete, fragmento, peça, tudo é motivo para ter baforada no meio, agora estamos inconsoláveis por não ter charuto no espetáculo infantil, crianças caretas...

Em junho deste ano, numa postura atípica, unilateralmente burlei nosso consenso não negociado e, apesar da oscilação das moedinhas na minha bolsa, mas com ajuda externa, lhe dei uma Mafalda, não era toda Mafalda, mas quase. Em meados de outubro, numa investida conservadora Caroline me espera no teatro com o velho Titan, em clara intenção de retomar os diálogos infindáveis que as duas travamos fumando o charuto. Acatei positivamente a resolução, um charuto de aniversário só não é melhor que o licor de marula que me dá no natal. Mas desta vez, ela não ficaria para fumar comigo e este seria apenas o começo de uma crise tabageira.

Depois de breve reunião para acertar táticas de promoção da peça em cartel, fui voando para a praça quase deserta em frente de casa aproveitar o resto de sol, e lá me instalei com as rapaduras de leite, o bloquinho do Bob Esponja e uma caneta por qualquer coisa.
O charuto, sequer acendeu.
Estava velho, mas não velho por diabo, mas velho por mal conservado. Por sorte, ainda tinha um toquinho em casa guardado, não era um palheiro mas um bom paliativo, deu tempo de atravessar a rua para buscar e ainda voltar à praça quando, ao longe, o sol chegava ao Guaíba. Não fumar o charuto e ter que pegar o toquinho foi um coito interrompido, frustrante. Só não fiquei mais frustrada que Caroline quando mandei mensagem contando o acontecido, nem respondeu.

Hoje, me apareceu com uma latinha. Era um dominicano, mas para adquirir um desses dominicanos a última coisa que se pode fazer é voto de pobreza. Depois de inauditos discursos sobre a péssima conservação do charuto anterior e forte pressão para reclamação junto à loja em que foi comprado, Carol confessou, havia customizado o charuto que eu havia lhe dado em junho do ano passado, que pouca vergonha. Quanta recessão...Que corte nos gastos!

A "Estética da Chinelagem" proposta ética e estética do Grupo Trilho, cuja filosofia é, grosso modo, aproveitar o que se tem, apresentar onde se pode, dizer o que se pensa, foi levada às últimas consequencias por Carol, que negligenciou meu paladar requintado para tabaco e meu olfato apurado para falcatrua.

Com um salário de babá, ela me comprou um charuto dominicano. Mas a estética da chinelagem não é invenção dela, e - diga-me com quem andas que te direi quem és - eu mesma já customizei presente também. No vigésimo aniversário, ganhei um vermouth de minha amigaCamila, ele ficou um bom tempo na escrivaninha esperando nova visita dela para ser aberto, mas um dia, eu não pude mais esperar. Depois de dois dias de fome fui até o Zaffari mais próximo e disse que havia comprado a bebida errada, quero trocar, perdi a notinha. Proveniente de algum mercado da Restinga, troquei o Martini em pleno Zaffari por arroz e feijão. Agora resta saber quem vai me processar primeiro, minha amica Camila ou os fratelli Zaffari.

Antes do pôr-do-sol, fui fumar meu dominicano. Sempre que vou para alguma praça inóspita para não atrapalhar ninguém com a fumaça, me aparece algum crioulo perguntando se é para Oxum, alguma adivinha dizendo que sou volátil como a fumaça, e até as pombas se chegam, acabo dividindo o charuto com uma horda, promovemos a "revitalização da praça".

Desta vez uma figura deu oi, alguma carente pensei...respondi um oi atravessado e dei inicio aos trabalhos. Já quase noite de sábado e eu me sentindo em pleno santo domingo, a mesma moça levanta da grama, era a vizinha (!), antes eu via só uma cabeça no meio de um monte de cachorros, agora era ela mesma. Que fora, fui lá desculpar-me, ela entendeu e disse que ficou pensando se havia dado oi para a pessoa errada. Coitada, deve ter sofrido um choque anafilático quando me viu virando a cara - eu que passo como um bobo alegre distribuindo ois para a vizinhança - e para completar acendo aquele canhão que espantei os cachorros todos.

Ela foi, e depois veio para perto um gurizinho que chamei para dar um panfleto da peça infantil, mas deve ter levado à risca o conselho dos pais de não se aproximar de estranhos, muito menos estranhos muito estranhos, deu meia volta. Por mim passaram dois adolescentes passeando com as cachorrinhas de apartameno, Polly pra cá, Polly pra lá... na idade deles eu estaria no mesmo gramado tomando vinho com minhas amigas, nós éramos hippies anacrônicas ou eles são muito bundinhas? Já no fim do charuto veio um cachorrinho manco mas muito ágil que se encantou com o aroma do charuto, este era doente do pé mas bom das fuças. Em Santo Domingo poderia estar na praia e não na praça...

As praias mais belas da República Dominicana, são propriedade privada de hotéis instalados às suas margens, "nativos" (leia-se pobres, negros ou negros pobres) precisam de autorização para pisar em suas areias. Sou uma nativa, mas de outra República, sou uma negrita, mas de pele branca, e desconfio que Santo Domingo não me queira, apesar de tudo, sou uma pobre diaba.

Carol,
...você é mais bonita que o Rio de Janeiro em maio
e quase tão bonita
quanto a revolução cubana.


Um comentário:

  1. O único comentário que posso fazer é ANA EU TE AMO.
    Penso na sorte que tive em ir estudar no Ernesto com meu moletom do Bob, talvez se não fosse por isso eu nunca teria conhecido a pessoa maravilhosa que és.

    só mais uma coisa o Martíni e a rapadura ou paçoquinha(não lembro bem)eu comprei no Zaffari .da Fernado Machado.

    Saudades.bjss

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