domingo, 7 de julho de 2013

Vendo! Compro! Fechado!


O Mercado Público com suas bancas, ofertas e demandas parece uma bolsa de valores das iguarias. Assim que o mercado é aberto ao público, começam a ser cantados os números...quando chego no saguão entro no griteiro que só não empolga os menos ativos:

- 51!!!
- Uma boa ideia!
- Gelo e limão!


Pago as especiarias em espécie, mas esta prática está prestes a ser abolida pois o dinheiro eletrônico é a transação da maioria. E nessa maioria, milhares de pequenos empreendedores vamos em busca de opções para nossas ações gastronômicas. Para mim, o mercado público é tudo, menos peixe. Aos dezoito anos, além de ser o lugar no qual comprava os ingredientes para confeitaria, era local de passagem em direção ao terminal de ônibus que me conduzia à escola de teatro da Terreira da Tribo. Comecei a parar de vez em quando e foi lá que inaugurei um hábito dos mais solitários, dos menos saudáveis: tomar cerveja comendo Trakinas. Os amigos estranham mas depois aderem, porém nunca lá, no Mercado a cerveja é só minha, com minhas contas, minhas trakinas, só o garçom a testemunhar minha sina. Na segunda-feira próxima faria minha primeira entrega de doces no Mercado Público, iria ao mercado vender meu peixe, mas no sábado o mercado sofreu um fire e logo depois se seguiu a grande depressão. Justamente na parte mais afetada pelo incêndio ficava localizado o Telúrico, restaurante vegetariano da Márcia, que assim como eu aprendeu a cozinhar com a avó, e fazia qualquer vegetariano não se sentir um peixe fora do aquário em pleno mercado.

Para alguns comerciantes o incêndio de sábado deve ter sido, de fato, a bancarrota. Mas é interessante observar a fala do delegado Hilton Muller à RBS surpreso ao entrar no local e detectar que somente 10% do prédio havia sido consumido:

— O que vimos pela imprensa, era de que o dano era muito grande. Nos surpreendeu muito positivamente que o dano não tinha tanta dimensão.

Pedro não acredita, mas dentro de minha dispersão multidimensional tenho meus momentos de profunda observação, ninguém é escritora sem ser observadora. Na declaração do delegado está contida clara orientação das autoridades municipais para minimizar qualquer estrago que afete o "clima Copa do Mundo" , apesar de ficar claro que Porto Alegre tem mais vocação para a rebeldia que para o turismo. Os porto-alegrenses não estão neste mundo a passeio e também observam com atenção suas rotinas alteradas por obras viárias conduzidas a toque de caixa para inglês ver e moradias e famílias removidas autoritariamente como na vila Tronco. Porém, as notícias que me chegavam de quem acompanhava o incidente pela televisão eram realmente dramáticas. Para alguém que se sente à vontade nesta cidade e insiste em ocupá-la apesar de suas exclusões e desigualdades, um incêndio no Mercado Público é uma tristeza singular.

Do Mercado não carrego somente os bons momentos na Pão de Açúcar da pieguice "água com açúcar" do David Coimbra. Ele já foi um castelo fechado em meio à escuridão, habitado por ratos numa madrugada qualquer em que eu habitava a rua sem ter qualquer lugar para dormir. O mercado está em mim com tudo que tem de bom e de ruim, como tudo que amamos só pode ser assim.
A vida deve ser aspirada, vista de perto, vivenciada, não há tela que a represente. Estava a dez minutos do incêndio quando o telefone tocou e não havia caminho que não me conduzisse para o que parecia ser o desastre daquele prédio. Ao chegar constatei que uma parcela do imóvel era afetada e toda a parte inferior aparentava estar intacta. Quando o telefone tocou novamente era sobre o perigo da exposição à fumaça tóxica a notícia a ser alarmada. Fumaça sobe, no perímetro do mercado se respirava perfeitamente, no trajeto de volta me deparei com grande concentração da fumaça na avenida Salgado Filho.

Não havia duas semanas estava na avenida Borges de Medeiros quase na esquina com a Salgado Filho respirando, ou pior, sem respirar o gás lacrimogêneo que na Primeira Guerra Imperialista era considerada arma química e mudou de nome para que a repressão policial parecesse "ação técnica" de "efeito moral". A Salgado Filho em questão é uma das avenidas mais poluídas do país pela concentração de poluentes emitidos pelos ônibus que ali passam e têm seus terminais, e cujos prédios se encarregam de emparedar. Qualquer um que fique esperando nas principais sinaleiras ou paradas de ônibus desta cidade traga sua boa dose de fumaça diária, do diesel dos caminhões, dos ônibus da Viamão. Fumaça tóxica de madeira dos anos sessenta para mim é quase ar puro...

Sobre a imprensa...bem...vejamos...depois de acompanhar o protesto referido acima no centro da cidade, acompanhei a transmissão televisiva do protesto...
Odeio teoria da conspiração, ou qualquer outro falso terror que leve ao medo, à submissão ou ao engano. O problema é quando a conspiração é na prática, sai da teoria. O que vi foi uma sequência de imagens editadas criminosamente. Eu havia acabado de sair do real, que, em tese, é sempre parcial, indivídual, para a teórica imparcialidade da mídia que acompanhava o todo...A minha pequena parcela por mais tapada pela cortina de fumaça que estivesse, era mais verdadeira que toda a transmissão exibida na televisão. A prática de sobrepôr imagens e espisódios para consumar fatos não acontecidos não é coisa da mídia somente durante grandes golpes como na Venezuela de 2002, mas também na Porto Alegre de 2013 quando fomos golpeados pela polícia. Incrível...

Pode ser que, assim como os mercados, as câmeras se auto-regulem. Tudo é uma questão global. Tudo depende do ânimo. Dos investidores.

Me toca o estrago de 10 ou de 1% no Mercado Público. Já sentimos o aumento no valor do condomínio em função do PPCI, o Plano de Prevenção do patrimônio público da cidade estava vencido há seis anos...

Eu adoro arte, em Geni e o Zeppelin, música da "Ópera do Malandro", versão brasileira de Chico Buarque para uma obra de Brecht, se conta a história de uma cidade que merece ser explodida por concordar com o horror e a iniquidade, em "Dogville" de Lars Von Trier, a personagem principal decide incendiar a cidade para arrasar junto com o horror, a hipocrisia.

Os funcionários da bolsa de valores surtam em pouco tempo, se aposentam em pouco tempo. Os funcionários do Mercado Público trabalham lá há décadas...vejo seus filhos serem levados para trabalhar lá também, vejo que o trabalho duro inquestionado pelos pais é mal tragado pelas gerações atuais...afinal, no mundo das aplicações e dos aplicativos, dos milionários de vinte anos de idade, pode não ser o sonho emitir papéis com continhas feitas de cabeça um dia inteiro todo dia. No mundo do pregão eletrônico, o esforço físico carregando caixas pesadas pode não ser uma atividade tão bem cotada. Mas sempre há algum ou outro Hegeliano que acredite que o escravo é que é realmente livre...

Quando o índice de pessoas é muito alto eu dispenso uma "solidariedade comerciária" e ludibrio a clientela pregando alguns valores nutricionais dos alimentos que estão a comprar. Um dos funcionários, tem em mim uma espécie de corretora, vira para o pai:

- Não é a primeira vez que ela me salva quando o cliente pergunta.

Agora, e não sei por quanto tempo, o mercado onde: vendo! e: compro! está: fechado!