segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge

Antes de ver Batman com Hanna, resolvi ressurgir na casa de Carmen que é a própria mulher gato (tem gatos, esculturas de gatos, miniaturas de gatos e um cachorro, só para apanhar dos gatos). A ideia era concretizar um mate adiado há mais de ano e se a gata da Paulinha não tivesse sequestrado a cuia da mãe, Carmen e eu teríamos tomado umas duas chaleiras, a gata da Clarinha fugiu para o quarto assim que anteviu configurar-se na sala o princípio de uma narração ininterrupta, emocionada, empática e multifacetada: duas mulheres que há tempo não conversavam. Lá pelas tantas catamos das trevas uma cuia e finalmente mateamos antes de eu voar para o cinema e passar as duas horas e quarenta e cinco de filme querendo mijar (!!!).

Da trilogia de Christopher Nolan não lembro de ter visto o primeiro filme (Batman Begins) mas me cativou o segundo (Batman: O Cavaleiro das Trevas) que me levou a ver o terceiro (Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge), para ser uma mercadoria da Warner Bros estes últimos abordam teses sobre ética até relevantes que não ocupam apenas dois hipócritas e rasteiros minutos da película como em quase todas as mercadorias de entretenimento.

No segundo filme é apresentada, em traços grossos, a seguinte situação ética: um promotor público se destaca no combate ao crime organizado, assume a identidade de Batman como tática para proteger o herói e a si mesmo e se consolida como uma referência de justiça para a população, em seguida, vitimizado pelo vilão Coringa se corrompe transformando-se num criminoso também, para que o povo não perca a esperança na justiça e na ética encarnadas no herói, o verdadeiro Batman assume a autoria dos crimes e isenta a imagem do promotor que morre, mas cujo caráter permanece publicamente ileso. A tese central: herói é aquele que faz o que é necessário.

O terceiro ainda está fresco em minha cabeça. Como todo produto lançado com o objetivo de obter lucro e ao mesmo tempo reforçar a ideologia que garante uma sociedade na qual seja possível alguém obter lucro, quase todos os personagens carregam uma simbologia direcionada, no cerne da trama o mentor da vilania por trás do vilão secundário é uma mulher, o homem-morcego aparece num princípio decadente e desprovido de cartilagens devido à sua alta produtividade no passado, mas depois de dois abdominais se recupera e volta à ativa, uma ladra que tenta, de maneira criminosa, conseguir uma "Ficha Limpa" - a arte sempre antecipa a vida e a política - mas se regenera após momentos de contradições, um jovem detetive que questiona atuação de policiais por estes só acatarem ordens superiores sem refletir sobre a situação concreta, um Alfred que além de falar de igual para igual com seu patrão herda boa parte de sua fortuna.

Dentre as situações centrais, um vilão grotesco que no momento de caos provocado por ele mesmo se apresenta como detentor dos destinos do povo e com discursos nazi- fascistas de apologia popular contra as classes dominantes declara estado de lei marcial e instaura em Ghotam tribunais com processos de julgamento e punição similares aos universalizados pelos episódios seguidos às revoluções francesa e russa nos quais até os colaboradores são condenados e executados. Em instantes épicos o povo da cidade vai às ruas contra a tirania e, no final, o homem-morcego salva sua cidade, seu povo e a si mesmo (???) depois de explodir no ar com uma bomba nuclear. A bomba, antes de bomba era um reator que caso tivesse o núcleo preservado seria a investida ecológica da cidade...

Talvez esse seja o lado mais lúdico do filme, a alternativa ecológica. Mais lúdico até do que um "homem-morcego". Cogitar uma saída ecológica sem cogitar a saída do sistema capitalista é uma xarada debochada digna do Coringa, personagens que não aparecem no terceiro roteiro.

Desde o super-atleta que apresenta alto desempenho até a mulher no comando, a jogada publicitária é implícita em busca de supervalorização de um determinado tipo social e/ou ampliação de um mercado consumidor emergente que garante a expansão do lucro na sociedade do espetáculo. Seja o mordomo do filme ou as empreguetes da novela, a farsa é a de que o povo está no poder, que o povo pode... por conciliação.

Já o vilão grotesco que no momento de caos se apresenta, este não é nada lúdico. Na Grécia em meio ao caos econômico provocado pela especulação do capital internacionalizado e suas ações sem lastro e, pelo qual seus gestores econômicos tentam culpabilizar o Estado grego acusando como um dos motivos a concessão de benefícios a seus trabalhadores, o partido neonazista local elegeu uma bancada generosa com representantes medonhos. Brutamontes exigiram da imprensa a recepção em pé de seu líder, cena cinematográfica, pouco tempo depois um dos parlamentares desferiu bofetadas a parlamentares opositoras em um programa de televisão. O nome deste filme? 2012 e não 1984.

A reflexão sobre moral e ética é abordada de maneira progressista pelos socialistas há muito tempo, em sua arte, em sua teoria política. E com igual capacidade com que foi desenvolvida a moral revolucionária que rompe com armadilhas retrógradas e mitos que dão sustentação ao moralismo burguês, foi utilizada de maneira hipócrita, desleal e criminosa por setores ditos socialistas que experenciaram o poder político em diferentes regimes e lugares.

O mito que torna o roteiro de Batman inverossímil não são as proezas fantásticas que a arte é capaz de criar, a fantasia tem uma verdade para cada mente. Batman é o garoto propaganda perfeito para a indústria do consumo, não dispõe de superpoderes, dispõe de dinheiro, tecnologia, uma boa performance intelectual e física e, claro, vive motorizado, mas a grande mentira na estória do homem morcego é que a cidade de Gotham é alvo para o crime organizado. Gotham City é uma cidade organizada para o crime. Gotham tem policiais corruptos, políticos corruptos, empresários corruptos e quando é atacada por vilões apenas um homem tem o dinheiro, a inteligência, a tecnologia para protegê-la.

Ao ouvir o comentário: “Infeliz do povo que não tem heróis" o dramaturgo alemão Bertolt Brecht teria respondido: "Infeliz do povo que precisa de heróis".

Assim como Brecht, qualquer comunista sabe que herói é aquele que faz o que é necessário mesmo que sua imagem fique suja aos olhos do senso comum. Mas para qualquer comunista que se preze o herói faz o que é necessário para o bem comum. Em cidades como Gotham ex-comunistas chegam ao planalto de batmóvel e sobem a rampa com o guarda-chuva do Pinguim.

Nossos heróis rebaixaram seu programa até que ficasse aceitável para os empresários, a polícia e os vilões de Gotham, mas para garantir a estabilidade da cidade nosso homem-morcego sugou os recursos públicos dela. Em cidades como Gotham o dinheiro comum é necessário pois há um vilão para cada gabinete organizado.

Infeliz do povo que precisa de heróis...













domingo, 12 de fevereiro de 2012

Makeup para a cup


Se os domingos tem sido um tanto rotineiros apesar de prazerosos (leituras sobre a guerra civil espanhola ainda e por muito tempo) a previsibilidade acaba às vésperas das segunda-feiras. Os acontecimentos imprevisíveis de um derradeiro domingo de fevereiro na Cidade Baixa de Porto Alegre, na atual conjuntura, não são nenhum fevereiro russo, em conjuntura revolucionária, mas me rendem uma dez crônicas para abalar o blog.

Como qualquer processo criativo, no qual se está intensamente envolvida, a construção da personagem Tereza Carrar extrapola as horas de ensaio e me invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, exige predisposição para detalhes mundanos e humanos que contribuam em sua formação. O trabalho automatizado e mecânico, também invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, mas esse neurotiza as pessoas em tempos modernos. Quem cria enlouquece com lucidez, com relativa lucidez - hoje despertei espreguiçando com as mãos floreando em movimentos flamencos (!). A pausa no trabalho corpóreo aos domingos não obedece nenhum resquício religioso que possa restar-me, mas os dos companheiros peruanos que organizam almoços dominicais no Comitê Latinoamericano religiosamente. Passo o dia a ler sobre o período histórico e mais previsivel que o domingo, só o papel contrarrevolucionário que a socialdemocracia cumpre em diferentes períodos históricos.

Entre uma página e outra, um mate e outro, um afazer doméstico e outro, um adolescente e outro, um gato e outro, um lanchinho e muitos outros, foram várias passagens pela janela até que decidi, o final da tarde seria para um charuto na galeria - os textos iriam junto claro. Com aquele frio no leste europeu é quase um crime não aproveitar as tardinhas de verão, sabe-se lá que nos espera...

Na ida para a galeria encontrei Débora, que mais tarde me acompanhou e passamos rapidamente da ditadura militar espanhola para a ditadura civil-militar brasileira ao evocarmos o querido e legendário Tejera de Ré, o Minhoca, companheiro destacado na resistência que, recentemente, deixou um número sem fim de amig@s e sinceras homenagens.

Depois de levar Deb em casa voltei reparando na quantidade enorme de "papa entulhos" que havia emergido no bairro devido à notificação autoritária que a Prefeitura enviou aos moradores intimando a arrumar urgentemente as calçadas - makeup para a cup. Eu havia passado um mes inteiro catando um daqueles para livrar-me dos ferros velhos que, há tempos estorvavam, na casa e quando achei fui espirituosamente perguntar à vizinha (distante, porém, vizinha) se poderia levar umas coisinhas. À pergunta seguiu-se uma ladainha infindável sobre como todo mundo jogava qualquer coisa no tal "papa entulho" dela ao invés de jogar no container (socorro!!!aquilo é lugar de lixo orgânico), que logo excederia em peso, que certamente cobrariam multa e mais uma porção de coisas - deve ter achado que meus ouvidos eram container também. Passada aquela mal sucedida empreitada, o atual contingente de "papa entulhos" era o paraíso na terra, ou melhor no asfalto, em instantes voltaria com boa parte da sucata.

Quase meia-noite, uma parada na cozinha só para um macarrão, outra parada na janela só para não perder o costume, toca o telefone. O amigo uruguaio conta que havia passado na praça para a qual nesse então eu olhava com ares de assassina a vestir as luvas de raspa (herança da carpintaria de formas) decidida a carregar os ferros. Elbio é a educação personificada, devo ser a única pessoa para a qual ele se atreve a ligar num domingo tarde da noite, talvez por ser a única com séria probabilidade a orquestrar uma tarefa no "papa entulho" num domingo tarde da noite. Terminada a conversa, me fui.

- Rachel, vou levar o ferro velho, já volto.
- Quer ajuda?
- Quero, mas só tenho um par de luvas, tira o vestido, troca de roupa.

Digamos que ela captou bem o espírito da coisa e se vestiu bem propícia à atividade, colocou a roupa mais rasgada que tinha e lá fomos nós carregadas. Apesar do peso pude dar boas risadas quando passamos por uma patotinha de guris que bem que teriam se fresqueado caso ela ainda estivesse no vestido, naquelas circunstâncias só vimos as caras de espanto - a visão era de dois seres aparentemente do sexo feminino surgidos das trevas cobertas por materiais dos mais variados.

Depois de depositarmos a sucata "pé por pé" para evitar o flagrante no papa entulho alheio, Rachel seguiu pelo lado da rua mais obscuro e inóspito para voltar para casa, meu instinto para o perigo só funciona com baratas mas meu instinto antisséptico é bem ativo e sabendo que aquela parte da rua cheia de moitinhas é um verdadeiro banheiro a céu aberto saltei:

- Vamos do outro lado.

Diferente de nós, um rapaz optou por tomar o lado escuro da rua, mas depois de uns cem metros de conversa quando chegávamos à esquina, percebi que o caminhar dele afunilava e, finalmente, atravessava em nossa direção, alertei Rachel e prontamente revertemos o caminho retornando para o trecho, movimentado e iluminado, do qual vínhamos. Não deu tempo, o homem nos alcançou, tomei a frente e disse que não tinha nada, ele insistiu para que desse o celular que estava no bolso da bermuda (meus amigos ligam domingo a altas horas, ora), eu repeti que nada tinha, ele fez um gesto de possuir algum objeto na parte inferior do abdome (acho que se havia algum objeto ali era meramente sexual), lhe agarrei as mãos (não desperdiçaria a oportunidade com minhas luvas de raspa fatais), mandei Rachel correr (ela não correu, andou um pouquinho o que aumentou minha tensão) e começei a gritar alto o suficiente ao ponto dos moradores dos arredores mesmo assim conseguirem fazer vista grossa, ele ficou sem reação e se foi.

Novamente no extremo iluminado da rua perguntei ao garçom do bar se não havia escutado os gritos, disse nada ter ouvido - a visão do rapaz deve ser mais aguçada que a audição a julgar que, quando passo de saia, está sempre atento - me perguntou como era o cara, lhe dei a descrição e ao mesmo tempo me surgiu que era parecido com Jonatan, um rapaz em situação de rua que conheço há anos, uma vez um vulto emergiu de uma praça em frente à qual eu passava às tres da manhã. Naquela ocasião pensei:... estou ferrada, a essa hora, essa praça... e aquele vulto saindo dela. O vulto em questão era Jonatan e disse: - Oi! Jonatan era irmão de Pablo, o qual conheci enquanto vendia docinhos na rua há uns dez anos e o qual, com seus dez anos talvez, me pedia os negrinhos que não podia dar mas dava. Foi com Luara, enquanto vendíamos caipirinha e leite de onça na rua há uns oito anos, que juntamos as histórias, não lembro como os associamos e qual deles ela conheceu mas de fato se tratava de dois irmãos que moravam na rua separados, Pablo cada dia mais corrompido e drogado, Jonatan educado e sempre atrás de "bicos".

O garçom sugeriu comunicar a Brigada Militar, pensei em ligar e denunciar uma manifestação de professores ou contra o aumento das passagens de ônibus, o que garantiria a agilidade do serviço, mas preferi voltar para casa. Assim que passou uma família inteira "pegamos carona" e caminhamos juntos, eu não havia visto o sujeito sumir no horizonte, desconfiei que estivesse por ali à espreita. Caminhando e contando e seguindo o povão, estava a narrar o acontecido quando atravessa em nossa direção o mesmissimo homem que tentara roubar-me, vi que era o mesmo pela roupa, meio perplexo me viu no meio das pessoas, completamente perplexa o pude ver com demora, os dois nos cumprimentamos, ele cínico, eu irônica. O vulto em questão era Jonatan.

Se não me reconheceu, não sei, pode haver reconhecido quando já era tarde para desistir da abordagem, pode haver reconhecido e mesmo assim investido na ação totalmente fissurado. Como não o reconheci, não sei, talvez na tensão me fique tudo nubiado, posso haver reconhecido e não haver acreditado.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pajero Sexy, Nude Full


Beirava a meia-noite quando decidi encerrar meu domingo que, havia sido inteiro dedicado ao estudo da guerra civil espanhola, depois de adentrar em pormenores sobre a Alsácia-Lorena - é sabido que a Alsácia-Lorena não fica na España mas é como minha Amiga Lorena, mesmo sem querer, consegue gerar problemas de dimensões internacionais.


Não faz muito convidei Lorena para uma saída noturna, a noite seria uma criança, pelo menos até a meia-noite que é o horário em que começo a achar a noite uma criança chata e repetitiva e Lorena volta para casa cuidar suas crianças que de metáfóricas não têm nada. Estava tudo correndo às mil maravilhas, fora o fato dela estar escorrendo às mil maravilhas em função do calor insuportável que assola a cidade, eu já bebia bem feliz mas Lorena mal havia encostado no copo quando me alertou sobre um embrionário mal-estar no exato momento em que começou a tocar um tango, naquele instante poderia ser o Freud a trovar sobre o mal-estar na civilização, peguei Lorena jogamos mesa para um lado cadeiras para o outro e tangueamos nomás como si fuera esta noche la última vez.



E provavelmente tenha sido a última vez naquele lugar, porque eu mal havia saído da pose final e Lorena me olha: - Voy a vomitar ahora. Mas uma corridinha até o banheiro não seria impossível, numa angustia digna de um bom tango Lore segurou firme até lá, impossível foi achar o banheiro disponível. Depois de invadir a cozinha e pegar a primeira coisa vomitável que vi pela frente (uma caixa de papelão) veio o estrago e foi um papelão só, quando fomos abordadas naquela inevitável ação, deixei cair a caixa ao que o conteúdo se espalhou pelo chão para acabar de vez com qualquer possibilidade de ocultação e ocasionar fatal constrangimento. Enquanto eu limpava o chão com esfregão Lorena pulava ao meu redor: - Mirá! Mejoré, estoy bien ya! O "melhorei" dela era um melhorei tão pueril quanto o de uma criança resfriada que insiste em tomar banho de mangueira, no instante em que me prestei a parar o frenesi do esfregão e lhe olhei na cara parecia Gasparzinho, o fantasminha camarada, uma coisa transparente falando sem parar.

A Alsácia-Lorena e a Lorena rendem para uma boa historiadora e para uma boa amiga, respectivamente, capítulos copiosos que merecem ser escritos, por enquanto me resumo à crônica do fim de domingo. Depois de adentrar nos pormenores, beirar a meia-noite, refletir sobre a Alsácia e a Lorena, me plantei na frente da televisão para pintar as unhas (pior que ler só no domingo é ler no domingo e achar que leu demais...). Pintar as unhas não tem sido um evento raro depois que inventei de arranhar o chão na partitura de movimentos que criei para a personagem de Bertolt Brecht, Tereza Carrar, cuja história se passa na Andaluzia em 1936, o esmalte ajuda a proteger as unhas, mesmo que o nome da cor "Sexy Nude", a qual comprei sem achar grande coisa e resultou ficar lindíssima nas mãos, não denuncie proteger coisa alguma. Mas futilidade de comunista não dura muito, foi quando terminei a mão esquerda que meu "momento perua" foi interrompido. Já havia escutado uma sirene silenciar muito próximo - sempre que acontece penso que é um péssimo sinal pois significa que houve o óbito - outras se seguiram e igualmente silenciaram tão próximas quanto a primeira. Não pensei duas vezes, meu lado investigativo (descobrir em primeira mão) ou meu lado comunista (descobrir em primeira mão para traduzir aos vizinhos no dia seguinte depois de uma avaliação) superou meu lado paysano (esperar o dia seguinte para perguntar ao jornalista, ao comunista e aumentar em cem o número de mortos).

Se saísse do jeito que estava teria que torcer para as sirenes não serem da polícia e, pela terceira vez, ser detida não por ataque violento à ordem pública mas ao pudor, pesquei uma minissaia no armário e tentei mas não houve jeito, foi-se o esmalte da mão esquerda que ainda estava fresco, era demais querer uma unha bem pintada para poder arranhar o piso, saí noite adentro descabelada, com minha saia de pirigueti e com uma mão feita de "Sexy Nude" e a outra não, caso fosse uma batida policial no inferninho da esquina não voltava para casa tão cedo.

O "acidente" (não considero que os quase diários eventos desastrosos com automóveis nesta rua sejam acidentes, sempre antes de ouvir as batidas ouço a velocidade enlouquecida com que se deslocam) envolveu, além de seis pessoas, uma Pajero Full e um Gol. Desde minha chegada ao local até minha saída constatei o trânsito de, no mínimo, nove veículos de auxílio entre ambulâncias, carros de bombeiros, e viaturas da brigada militar e EPTC, do Gol restaram ferragens e pessoas presas nelas.

A barbárie do trânsito rodoviário e urbano é, em última instância, gestada numa mesma produção em série. Ao volante o indivíduo fútil, massificado, colonizado, explorado, oprimido, desvalorizado que acredita possuir valor apenas dentro de um latão com financiamento a perder de vista, na traseira desse indivíduo irresponsável, uma das indústrias mais poderosas do mundo, pressionando governos a fomentar crédito e isentar dos mais variados impostos sua mercadoria no esforço para evitar redução de lucros, o custo é imediatamente humano (a propaganda ofensiva confere ao fetiche poderes superhumanos e desmedidos que se traduzem em desastres a cada minuto), mediatamente planetário (a agressão ambiental é acelerada pela poluição causada por milhares de veículos em circulação em cada país) e alarmantemente público (segundo maior problema de saúde pública no Brasil com ocupação de 55% dos leitos hospitalares sem contar as doenças respiratórias que matam três crianças por dia em São Paulo). O governo brasileiro em sua política econômica sempre pronta a promover o "aquecimento" da economia que nada mais é que o consumismo exagerado é imediatamente, mediatamente e alarmantemente anti-ético. O único sinal a frear o carro-chefe da America Latina em suas importações automotivas foi a balança comercial, a balança da justiça social definitivamente não é o que mais importa à socialdemocracia brasileira.


A esquina, além de tomada pelos carros públicos e acidentados, contava com um bom número de pessoas curiosas (as quais somos chamadas de populares pelo jornalismo) e, na hora em que parece ter havido mais movimentação e chegou a formar-se um pequeno corre-corre, apareceu o que não poderia faltar: um cachorro. O cachorro era vira-lata, não acompanhava agente de segurança ou socorrista algum, a cidade baixa não é um bairro com número expressivo de vira-latas - o que mais se vê são cachorros domésticos presos às coleiras dos donos - mas asserindo o que é quase tão antigo quanto a própria tragédia o vira-lata emergiu com aquela capacidade dos cachorros de estar sempre em meio ao caos como que para ajudar em alguma coisa.


Assim que vi um jornalista agucei os ouvidos para saber do parecer "formal" do ocorrido visto que não havia vítimas fatais nem gravemente feridas, ao menos aparentemente. Se há algo que sufoca a jornalista que nunca serei, é essa incapacidade para panoramas técnicos ou mesmo essenciais mas que me escapam por sua materialidade incompatível com a abstração que me acompanha, enquanto eu observava bombeiros em ação, vizinhos que nunca havia visto no bairro e, principalmente o cachorro emergindo no caos, algumas pessoas a meu lado faziam uma análise perita sobre o lado do carro batido, a porta atingida, a umidade relativa do ar no exato momento da colisão, aliás, nem sei para que existem técnicos especializados nisso, vox populi, vox dei... Embora chegado por último imaginei que, aquele homem de mente perspicaz para o trato da notícia, com certeza arrasaria todo meu esforço tardio por apreender o que havia de mais concreto e lógico naquele choque, o brigadiano prontamente se dispôs a responder e eu estava a uma distância da qual ouvia perfeitamente:


- Nomes?

- Fulano, Ciclana, Mengano.

- Motivo?

- Provavelmente atravessou o sinal vermelho.

- Estado?

- Regular.

- Obrigada.


Pronto. A devassa ficou para o fotógrafo que por pouco não entrou na ambulância para registrar imagens até do tecido adiposo do socorrido. Me pergunto se é realmente de utilidade pública veicular três nomes que só dizem respeito às suas famílias e uma foto enorme da coisa, mas eu me pergunto tanta coisa... Fato é que aquela Pajero Full passa não só por cima de palha mas de um monte de outras coisas e é capaz de amassar fullpletamente outro carro. Fatídico deve ser sair com ela para qualquer outro país da América Latina, a etimologia para pajero é de domínio popular .


Utilidade pública mesmo é o relato de George Orwell sobre o período em que lutou nas milícias de defesa da república española durante a guerra civil. Apesar de certo preciosismo típico do inglês desconfio que também houvesse um esforço seu na apreensão total e racional dos fatos, mas não se torna forçado na forma - pior coisa que há é o distraído tentando dar uma de exato, um desastre. A ótima recomendação de Mário Maestri antecipou a pilha de leituras cedidas generosa e entusiasmadamente por Enrique Padrós, dois professores e historiadores cuja atuação extrapola as cátedras acadêmicas na produção e democratização de conhecimento.


O relato de Orwell é full. Franco pisou no povo espanhol como se pisa em palha. O capitalismo ficou nude perante o mundo.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Razón de Vivir 2/2


* A Rosmarie de presente, a Marty de regalo.

A última noite do ano em Porto Alegre foi como qualquer dia do ano em Montevideo, de frio.
Só há uma coisa que abomino tanto quanto a injustiça, o frio. Uma, obra humana, o outro, obra da natura. Assim era, era quando Vivaldi compôs As Quatro Estações, agora as quatro estações ou a falta delas também podem ser obras humanas, ou desumanas. Estou convencida que, enquanto o planeta superaquece, a humanidade resfria com o derretimento das geleiras, pelo menos a humanidade do sul da América do Sul, que experimentou frio atípico no ano que passou.

A única tradição que celebro religiosamente todo natal e ano novo é a falta de luz na cidade, ainda bem que a cidade luz é Gramado, Porto Alegre nunca poderia sediar tal evento. A queda de luz veio com o cair da noite de 31 de dezembro, consequência do consumo desmedido de energia que acompanha o consumismo desmedido destas datas, cuja comemoração contradiz o cristianismo em todo seu dogma e cartilha. Os sete pecados capitais são alforriados para satisfazer os pecados do capital: o lucro, seu acúmulo. Há quem acredite muito, há quem acredite pouco, há quem não acredite, mas todos terão crédito. Ao meio dia do 24 de dezembro, apenas uma das empresas que dominam o mercado de cartões de crédito e débito no país registrou 655 operações em um segundo, a estimativa era que no dia seguinte passassem de 800. Nosso afresco atual - se a pós modernidade nos permitisse algum gênio à altura de Da Vinci - seria a pintura de um enorme presépio bem iluminado com os reis magos pagando os presentes do menino no Cielo.

Escrevia no escuro e o único foco de luz era a brasa do charuto aceso até Hanna aparecer iluminando com seu tablet - presente de natal claro - havia pedido para ela cantar Maná depois que meu Silvio Rodriguez parou junto com o apagão. A cena da noite da "virada" em casa era algo como se o mar que separa Cuba dos EUA secasse e seus territórios se juntassem: uma com seu habano na janela da área de serviço escrevendo à mão no escuro, a outra ao lado segurando o tablet que toca música e funciona até quando a gente não quer que funcione. Agora brilhavam além da brasa, o enorme par de olhos verdes dela e os azuis do siamês. Energia elétrica de volta, voltei para o quarto e para Silvio.

Para estarmos completamente agasalhados e ainda assim passar frio no novembro montevideano só poderíamos ser dois brasileiros, uma uruguaia abrasileirada e um cubano (por mais caliente que o cubano fosse). Cônscia de minha hipotermia e do viento sur de Montevideo havia ido para o show, que seria num pequeno estádio, prevenida de chale de lã e tudo. Lud e Fonsequinha nem tanto. Havíamos nos deparado com o estádio depois de passar por um "mini bosque" dentro de um parque onde se localizava o Charrúa. O cheirinho das tortas fritas, uma massa simples com forma de pão árabe frita em gordura animal, desafia meu vegetarianismo adulto trazendo uma infância em que aquelas tortas eram sinônimo de festa, futebol, música e trunfo - não havia satisfação maior para uma criança que pedir dinheiro para comprar torta frita e voltar com aquele troféu que, carregado por duas mãozinhas, sob a admiração de dois olhinhos, mais parece uma lua cheia.

Nos abancamos a uma distância em que podíamos ver Silvio além de escutá-lo, havia um mês as entradas tinham sido compradas pelos amigos Sebastián Jantos e Rossanna Attias numa verdadeira transação econômica Porto Alegre - Montevideo que contou com a mãe da Claudia e a mãe da Ro, ou seja, havia mais pessoas envolvidas na árdua compra dos ingressos que as que fomos ao concierto. Durante a apresentação Silvio reclamou do frio, Lud, Fonseca e eu entendemos perfeitamente, os outros quinze mil, todos uruguaios, caíram no riso e retrucaram: - Esto no es frio!

Bom comunista que é, dedicou uma música ao público das arquibancadas que "tinham menos e por isso compraram as entradas mais baratas", eu havia acabado de pagar o valor do ingresso a Fonseca que me havia feito empréstimo na data da compra, investi meu salário de vendedora para estar lá, em outro país a meio caminho do palco, talvez boa parte dos que estavam nos lugares menos privilegiados tenha decidido ir de última hora. Mas meu orgulho pequeno-burguês ferido não poderia sobrepôr-se àquele senso de justiça e humanismo, Silvio manda, aplaudi a declaração com entusiasmo. Vinte minutos depois do início da apresentação, grupos expressivos de pessoas ainda chegavam, sinal de que era um evento popular, no qual o chegar de ônibus, o pegar uma cerveja antes de sentar, o chegar atrasado mesmo, eram parte do espetáculo. As pessoas foram ao estádio ver Silvio Rodrigues como se fossem ver futebol, Brecht diria que é o músico perfeito, o músico das massas, o músico do materialismo histórico.

Os pedidos urrados da plateia eram os mais variados, se ouvia: - Silvio, cantá Unicornio! - Silvio, cantá Playa Girón! - Silvio, cantá El breve espacio!
Até que uma gritou: - Silvio, cantá lo que quieras!

Eu pedi Canción urgente para Nicarágua, tenho impressão que ele chegou a parar por uma fração de segundos para certificar-se que estava mesmo ouvindo aquilo, é, havia um dinossauro no meio do público, e era eu.

Minha expectativa para aquele concierto era descomunal, até pouco tempo, o Uruguay e Silvio me eram memória preciosa de um mundo cujo passado foi precipitado artificialmente, não esperava tê-los novamente, ali, juntos. O Uruguay em que nasci já havia rasgado seu papel de Suíça latinoamericana, repleto de velhos carros e esvaziado de uma parcela importante de seu povo que havia deixado o país exilada política ou economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo sem superação: a barbárie. A Cuba em que Silvio vivia, já havia rasgado seu papel de cassino latinoamericano, repleta de velhos carros e esvaziada de uma parcela importante de sua burguesia que havia deixado o país exilada política e economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo superado: o socialismo.

Agora eu esperava que o Uruguay cantasse do início ao fim junto com Silvio, mas boa parte do tempo só o escutou. Aquele não cantar junto com o artista destoava das tortas fritas iniciais, dos atrasos finais, do lugar onde foi realizado o show, e dos gritinhos emocionados entre uma música e outra, só combinava mesmo com o nome pelo qual é conhecido um show no Uruguay - concierto-, na hora do vamos ver, parecia um concerto clássico, no Brasil as pessoas cantariam junto, eu não ousava cantar sozinha com a voz desafinada que dói, com o timbre baixo de Silvio e o silêncio fúnebre durante algumas músicas seria alvo de uma torta frita se acompanhasse cantando. Não foi todo o tempo assim claro, alguns hinos rodrigueanos tiveram direito a coro massivo, alguns.

A certa altura do concierto Silvio foi homenageado como visitante Ilustre de Montevideo, já perto do final o visitante ilustre pediu ao público que sorrisse para ele filmar e postar em seu blog, "sinó no me lo creen"...

O concierto contou com as flautas mágicas de uma moça que à primeira vista, por sua postura, vestimenta e cabelos, parecia uma freira e ao tocar seu clarinete e flautas mais parecia uma ninfa. Silvio a acompanhava enfeitiçado, o público estarrecido - o que talvez explique os silêncios fúnebres, talvez fossem silêncios celestiais. A nostalgia e a doçura das melodias do músico harmonizavam com o sopro dos instrumentos dela de um modo que parecia encantado por suas próprias composições, algumas concebidas e executadas há mais tempo que o tempo de vida da clarinetista. Eu não sabia mas depois descobri, Silvio estava encantado pela instrumentista e pela esposa Niurka González.

Quando o amor ali já havia tomado o poder, quando já havia se estabelecido como estética oficial, adentra o palco Amaury, outro cubano, amigo de Silvio, músico que não seria bem daqueles que caem no gosto dos que lotaram o Charrúa. Então Amaury numa simplicidade e alegría comoventes contou porque havia atravessado a América Latina para cantar aos uruguaios.

A música que seguiria, "La uruguaya", foi composta por ele para Alejandra, uma uruguaia chegada em Cuba com seus pais depois do último golpe civil-militar e do terrorismo de Estado instaurados no Uruguay. Alejandra chegou à ilha grávida e por lá não ficou muito tempo, mas o tempo suficiente para enamorar Amaury, o companheiro cubano se mostrou companheiro de vida e ela dedicou o nome de seu filho àquele homem apaixonado e generoso. Amaury lhe dedicou a música e prometeu cantá-la para ela, no país dela.

Amaury cumpriu a promessa quase quarenta anos mais tarde, Alejandra estava na plateia. Por acaso, eu também.