sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Surpresa !


Surpresa só tem significado ruim no dicionário. Para uma parte considerável da humanidade, quer dizer uma coisa: prazer inesperado. Para as crianças, interessa bulhufas a etimologia da palavra (que resultou no francês: surprise), sua história - apelidou imposto extaordinário em 1549-  ou sentidos vários; acontecimentos imprevistos, sobressaltos, espantos, não são surpresa, ela é do bem. 
 
Quando cultivada ciclicamente, orgânica, sem agrotóxicos, a surpresa nos permite não apenas fugas ingênuas de um cotidiano cronometrado, mas posibilidade de reinventar o que aparenta mesmice irremediável.
 
No vigésimo aniversário de minha amiga Flávia - conivente na idade e nos crimes lícitos- resolvi fazer uma surpresa. Algo diferente antes de cumprir o ritual anual que começa com um presente qualquer de uma mesma girafa e culmina comigo comendo metade da torta. Mas que fazer? No saguão do prédio, já portando alguns balões pensei que o mais cabível seria entrar voando com os balões pela janela da sala. Ela adoraria, visto que mora no segundo andar. Mas era impossível, não havia vento suficiente, a atmosfera carregava um condensado mormaço que dificultaria meu voo. Tive que adaptar a surpresa à realidade concreta, e a realidade mais concreta nesse caso era o muro do vizinho. "O Leandro" não é o tipo de vizinho que dispense algo surpreendente - certa vez apareceu com um vidrinho no qual guardava um hérnia retirada da coluna - é um ser evoluído, quase um palhaço.O trajeto da porta ao muro já foi um constante surpreender-se. Começou com a cara dele quando abriu a porta:
 
- Oi Leandro tudo bem, posso pular teu muro?
 
Ele que já estava entediado, quase tão entardecido quanto aquele sábado, só faltou responder;
 
- Claro, por que nunca pediu antes? 
 
O muro era distante da porta o suficiente para especularmos mil e uma reações da neurótica da Angélica caso chegasse e enconrtasse o marido tentando me jogar pro pátio do apartamento da vizinha. Um surpreendia o outro dando uma versão mais bizarra, a surpresa pra Flávia poderia terminar em crime passional. Mas "a Angélica" não chegou e lá estávamos os balões e eu em cima do muro. Flávia realmente não esperava, inclusive me proibiu o uso de entorpecentes por um mês. Também as circunstâncias caixinhas me reservavam surpresa, fui salva pelo "tio João"  - o tio quarentão gato da Flávia - quando fiquei encalhada no muro com medo de pular. Até hoje quando estamos com tio João e algum muro por perto, dou um jeito de ficar encalhada.
 
Há também as surpresas universais e coletivas.
Surpreendemo-nos com a natureza: flor do maracujá, teia de aranha, sol nascente e poente, mar abissal prepotente. Embora em todo seu labor, simetria e precisão ela seja mais determinada que sábia, surpreende a nós e não a si mesma. Talvez nos surpreendamos tanto por conhecê-la pouco.. Paradoxalmente, o ser que desenvolveu capacidade consciente e, como nenhum outro, potencial criativo quase não nos surpreende, não creio que seja porque nos conheçamos muito. Não esporadicamente uma pequena parcela humana nos espanta, mas não é com prazeres inesperados ...Na crise de 2001 empresas armamentistas estadunidenses fizeram a seguinte promoção: Na compra de um lote de armas, duas minas grátis. 
 
Surpresas são odes ao caráter não estático da vida humana, uma evidência criativa de movimento. Variam em forma e conteúdo, intencionais e não intencionais, impovisadas ou não. As prefiro quando são conspiração individual ou coletiva para provocar prazer inesperado em alguém ou em muitos.

Fábula


Nasci em 1983, em outro mundo.
 
Li (me leram) os clássicos, alguns deles, Chapeuzinho Vermelho, Alice no País das Maravilhas, As Viagens de Gulliver. Nunca tive um só livro de princesas, Cinderela, Branca de Neve me eram longínquas, estranhas, os sete anões sim, estes eram populares, havia monumentos em sua homenagem nos jardins, no Uruguay havia tantos monumentos aos sete anões que pensava que haviam ajudado Artigas na luta pela independência do país. Mas eram as fábulas que vinham de graça em uns alfajores, que compunham minha vasta biblioteca de quase dez livrinhos. Os alfajores eram uma porcaria, mas as fábulas bem ilustradas em miniatura fascinantes, quando acabaram com a moral no mundo a fábrica deve ter falido. Mais tarde, com 6, leram para mim Horacio Quiroga, mas isso não vem ao caso, só comprova um esforço desmedido por parte dos tutores para tornar-me uma criança o mais esquisita possível.
Deus? Só entrava na casa da vizinha, na frente da porta tinha um santo perto dos anões.
 
Cheguei ao Brasil em pleno Fora Collor em tempo de comemorar jogando papeizinhos picados da janela do sétimo andar. O muro já tinha caído e eu achava que eles só existiam para que os gatos desfilassem por cima. 
Li (me leram) os clássicos, Manifesto Comunista, Que Fazer?, A Revolução Permanente. Por aqui os alfajores são tão ruins quanto aqueles em que vinham as fábulas, decidi baixar a glicose no sangue mas comprei a Revolução dos Bichos.
Me detive só nas teses revolucionárias, as que defendiam o latifúndio e o capital estavam no poder, podia apreciá-las na prática que é sempre mais rica que a teoria. E esta prática era muito rica, para poucos.
Com muro ou sem muro eu estava do lado certo, do lado daqueles que lutavam, ocupavam as ruas e as esplanadas contra privatizações, sucatemento de serviços básicos, concentração de terras, corrupção.
De lá para cá tudo mudou, e mudou tudo para não mudar quase nada...
 
Nesta sexta-feira, a sociedade do espetáculo prepara os meios de comunicação para o casamento do ano: o principe William e a plebeia Kate. Mas Kate Middleton é moderna e ri: "Ele tem sorte de estar comigo" .
E tem mesmo, o nobre tem muita sorte de estar com a plebeia, tem sorte de não haver perdido a cabeça junto com seus pares franceses e, em pleno século 21, esbanjar R$ 50 milhões na cerimônia de seu casamento no momento em que a economia europeia agoniza e seus trabalhadores e estudantes arcam com planos de escassez, sempre começando por contrarreformas da previdência e cortes nos investimentos em educação. Na manhã de hoje, milhares de ingleses saem às ruas, para acompanhar o casamento real, com certeza não são os mesmos que somaram cinquenta mil contra cortes nas universidades inglesas no final de 2010. Os milhões que sobram no casamento faltaram ao povo do Egito que teve historicamente até suas múmias saqueadas por burguesia e nobreza inglesas e paga caro pela crise que impacta desde 2008. Ao longo da história e até os dias de hoje, direta ou indiretamente o Reino Unido - nem tão unido assim - sangra países do norte africano cujos povos ocupam as ruas e praças de suas cidades, organizam greves inéditas, avançam em formas democráticas de poder perante ditaduras até então legitimadas pela UE. Não durou somente o tempo necessário para vender revistas, jornais e mídia, está acontecendo, dia após dia.
 
No Reino Unido, o principe tem sorte de ter Kate representando a plebe. No Brasil os ruralistas tem sorte de ter Aldo representando a plebe, só não o comparo Chapeuzinho Vermelho sendo enganada pelo lobo pois ela ainda tinha floresta para cantarolar até a casa da vovó. Agora estamos sob efeito Alice:no país das maravilhas. No país da Alice se privatiza aos poucos, parcelado, fragmentado, por etapas, como a revolução.
 
Durante o trajeto para o casamento de Willliam e Kate duzentos cavalos marcharão ao lado da comitiva real. Cavalos são animais altivos e sensíveis, muito dignos, espero que os duzentos cavalos se revoltem, se amotinem contra tanta desigualdade e escracho.    
 

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

"Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir "


Hoje, 4:30 da manhã me dirigi ao Posto de Saúde Modelo da capital para chegar na fila em tempo de conseguir lugar que me garantisse adquirir ficha para  atendimento com clínico geral a fim de tratar uma infecção urinária. Havia lá gente desde 02:30 h, sem novidades... Boa parte das pessoas que moramos nesta renomada capital já assimilamos mecanismos dos mais variados para driblar a escuridão da madrugada, o gelo de julho (não é que doença gosta do frio gaúcho?)  e alguma contingência  qualquer e, nessa rotina a solidariedade derivada, quem mora perto busca café para todos, quem traz jornal volta sem ele,  quem fica guarda lugar de quem sai mas volta, quem tem horas diz, quem sabe informa,  quem não ajuda não atrapalha.  Mas já havia dado no jornal e aconteceu, choveu. Uma forte chuva desabou o céu às 05:20 em Porto Alegre.


Na foto do celular umas pessoinhas molhadas, de longe, nada perto do que se vê por aí - crianças horas a fio em filas de hospitais, velhos terminais sem vaga para internação, alguns médicos-deuses com o “destino” das pessoas nas mãos porque ALGUN$ meteram as mãos nos recursos, de tudo. Mas dando um zoom, lá estavam : Angela Maiato, Libero Maiato, Neli Campidelli, Margarida De Jesus, Elisabete Borba, Jorge Lopes Goulart, Júlio Plínio Teixeira, Ariovaldo Medeiros, Marta Quintana Mandatare, Danilo Batista Vieira, Ramão Padilha, Eloina Flores,  Julio Cabral, Paulo Diehl, Maria Idalina, Rosalina  da Silva, Osmar Teixeira, Williams Monteiro, Ivone dos Santos, Nair da Silva, Antonio Oliveira, Lígia Castro, Renildo Moura, Neli Cabral, Thales Prado, Zilca Gollo, Beatriz Limberguer, Lisandro Suslia, Luis Alves, Neusa R,. Santos, Ana Campo.


Aquelas tinham 70, uma 77, outro um marca-passo, eu não poderia molhar-me, ninguém poderia molhar-se.  Mas o guarda responsável pela segurança do posto negou-se a acolher-nos no local alegando orientação superior. -Tudo bem amigo, entendemos, entre em contato com seu superior e haja rápido, pois os velhos estão ensopando. Foi negada a abertura do saguão, desta vez não entendemos.
Adentrar madrugadas para garantir um serviço público e universal já é no mínimo ultrajante quando sabemos que o dinheiro de todos e de cada um é desviado, transviado e qualquer coisa que se possa imaginar - que se tolere esta situação como única possibilidade para conseguir assistência não naturaliza ou dignifica este estado de coisas – ser deixadas  na chuva intensa e ter o acesso negado a um estabelecimento público esgotou a paciência de todas, só a paciência, pois continuamos molhados até 07:20 hora em que se abriram as portas.


Registrei queixa junto à administração do posto e à Prefeitura de Porto Alegre, que deveria propiciar estrutura e orientação 
 aos postos evitando a gladiação entre usuárias e funcionárias, temos direito a não padecer cada vez que seja necessária utilização do serviço, qualquerargumento terrorista que minimize o fato extrapolando a bárbara realidade da saúde pública na cidade, no Estado e no país, não atenua o senso de dignidade e respeito que, sabemos, merecemos em tudo.   *Julho de 2009

ANAcrônica





Tenho à frente dois gatos. Há também um cachorro enorme e submisso (como é dos cachorros) que faz o impossível para puxar o foco. Diferente do cachorro – que acaba de colocar duas patas em cima de mim - os gatos estanques, no simples ato de respirar, existir, são algo...
Oscar Wilde achava que a beleza fala por si mesma, em si mesma, dispensa explicação.
Os gatos dispensam explicação. 

Minha história com “as belezas” começa quando começo eu. De meu pai lembro a partir dos 4 – foi quando minha mãe o arranjou pra mim, até hoje ela tenta convencer-me que nasci com essa idade -, mas a gata é remota, lugar-comum, não tenho memória consciente sem ela. O bicho não era exemplo de diplomacia, arisca e meio “pancada” um dia saiu correndo comigo atrás e camuflou-se na paisagem horizontal. Foi-se. Não sem antes parir oito filhotinhos e, haveria matado todos não tivéssemos levado dois e alguns arranhões.
Valentino ficou comigo, Bartolomeu tinha destino bucólico: a chácara de três priminhos e um tio Nando. Meu tio... Esse merece um parágrafo próprio. É um sujeito sem equivalentes, apesar de reservado, zela como ninguém pela veia cômica da linhagem. Quando nos vemos falamos de política – tio Nando me “insultava” desde bebê: comunista! Com 4 anos eu não sabia muita coisa, mas sabia que comunista era nome feio, e não é que praga dele pega?
Para evitar que Bartolomeu desse fim aos pintinhos, tio Nando amarrou ao seu pescoço um longo barbante de nylon, alegou que assim poderia brincar, comer, cagar, até amadurecer e acostumar-se com a ideia dos pintos, enfim,controlar seus instintos felinos. É, Bartolomeu não teve vida longa no campo. Segundo tio Nando, o tempo passou e Bartolomeu cresceu, mas a cordinha no pescoço dele não cresceu junto. O gato morreu asfixiado.  
A essa altura Valentino já me era inerente. Não fosse ele, os complexos freudianos seriam redimensionados, sempre vinha depois de presenciar alguma sessão de tortura física e psicológica promovida por minha mãe. Ficava bem grudado, aflito. Dizem os místicos que gatos sugam a energia ruim das pessoas, renovam o ambiente. Ele era imprescindível. Aos 5 almoçava lentamente, foi alguns anos mais tarde acompanhando meu pai ao trabalho, que aprendi o almoçar taylorista-fordista, até então não tinha pressa. Quando chegava à metade de um bife já estava gelado, difícil de mastigar. As pessoas começavam a sair da mesa mas eu tinha “orientação” para permanecer .
-Até terminar tudo, viu?
Era justamente quando a mesa dispersava que Valentino entrava em ação. Os pedaços de bife ultrapassavam a janela e: - Cesta!
Nossa parceria foi promissora e duradoura. Até o dia em que fui pega. Em pleno arremesso. Desconfio ter sido sistematicamente espionada até o flagrante. Sem crise, já tinha antecedentes, com 2 fui pega repassando sanduíche para um cão na festinha de aniversário da vizinha.  
À medida que Valentino crescia uma gata amarela desfilava pelo muro cada vez com mais freqüência. Ele fugia desesperado, se havia algo que temia era a loira. E por falar em desespero...  
Diego era branco, orelhudo e no Brasil foi inventado para seduzir criancinhas inocentes na Páscoa. Veio diretamente da casa da vizinha e, por trás daquela bola de neve, se escondia uma encrenca. Um verdadeiro presente grego. O coelho de Tróia. Enganaram-se os integrantes da família que o imaginaram macrobiótico, cenoura, alface, comedido.
Diego era uma máquina de destruição em massa. Não havia nada na casa em que não houvesse afundado os dentões, brinquedos, sofás, dedos. Diego era visceral, para ele qualquer material era passível de experimentos, inclusive as botinas de couro do meu pai que faziam parte do uniforme de operário. Havia as botinas a.D e d.D, as botinas depois de Diego tinham arejamento nos dedões. Meu pai ficava mais perplexo do que puto.
Diego comeu tudo, só não comeu o gato, era um fenômeno. Naquela época ainda não era dentuça, mas já devia ter cara de Diego, sempre o xingavam olhando pra mim. Não sei quanto tempo ficou conosco mas o fim da samambaia de minha vó foi o tempo necessário. A planta gigantesca era um dos orgulhos dela. Diego foi comendo pelas beiradas, foi um trabalho in process, até o dia em que teve ausências suficientes para completar o serviço. Não tenho na memória registros do coelho depois desse episódio.
 Claro que minha infância não foi só gatos, coelho e formigas (essas não cabem na crônica) também tive uma escassa vida social. Mas não era sempre que estava disposta a cultivá-la.
Convenhamos que às vezes as outras crianças são muito chatas. Um exemplo categórico era minha vizinha Ana Laura. Numa daquelas tardes em que eu estava no “efeito ostra” bateu à porta querendo brincar, não havia desculpa que a espantasse. E como encheu... Foi pensando em algo mais convincente que olhei para aquele ser e tive uma passagem maquiavélica. Aproveitei que estava em vantagem e fiz exigências:
- Mas de esconde- esconde.
- Ta!
- Lá na tua casa.
- Ta!
- Tu conta.
Deve estar me procurando até hoje. Ana Laura não tinha chegado nem ao número cinco e eu já adentrava no 1149 da rua Silván Fernandez : – Vó, tu nem me viu hein!
Com 8 recém feitos veio a mudança - de país.

Ser arrancada de minha vó e Valentino foi a primeira injustiça irreversível que conheci. Não precisava. Valentino não demorou muito para abandonar a casa, minha vó tardou um pouco mais. Até hoje ela especula que Valentino trocou a espera de mim e o medo dela, pela companhia da gata amarela.
 Novembro 2007

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

As Ilhas


 Sou magra em cima e gorda embaixo, pé 40.
Era quando a loja em que acumulo tarefas (cliente- trabalhadora- cliente) acalmava o movimento que acertava por telefone, os detalhes para participar do desfile da escola de samba União da Ilha da Magia no carnaval de Florianópolis, O tema? Cuba Sim, Em nome da Verdade. Meu amigo Paulo Antonio, dono da loja, apóia mais a mim que a Cuba, mas incentiva as agitações, se depender de mim, Paulo é um dos maiores apoiadores indiretos de Cuba. Eu propagandeio aquilo que me parece saudável, os grãos saudáveis da loja, a sociedade saudável da ilha.     
 
No carnaval de 2011 deixaria de ser uma turista na Bambas da Orgia, escola na qual desfilo em Porto Alegre para ser turista na União da Ilha cujo samba enredo traçou a história de Cuba e exaltou seu momento revolucionário e as conquistas advindas deste, foi em visita à ilha do Caribe que o comandante da União da Ilha da Magia decidiu pelo tema. Cheguei lá como dizemos @suruguai@s como perro con dos colas (cachorro com dois rabos) de tão empolgada, do alto da minha pós modernidade achei que Cuba não incomodasse mais ninguém, que o espetáculo do capitalismo globalizado e globalizante havia assimilado a ilha numa convivência aceitável e permitida, cuja existência servisse mais para amedrontar as classes médias mais retrógradas com o lendário monstro da expropriação e das privações comunistas. Erro crasso.Como sempre desconfio do que falamos de nós mesmos, recorri à midia local para ver o que ela dizia de nós mesmos. A conclusão? Só eu acredito no fim da história, porque a burguesia não acredita mesmo.
 
 A escolha do tema foi a polêmica da cidade, quanto atraso, este tipo de reacionarismo parece tratar-se de uma ilha que parou no tempo há 50 anos...Além de ser uma burrice sem tamanho para os elementos capitalistas e reacionários alimentar este debate junto ao povo, um povo afrodescendente como o cubano, rico culturalmente como o cubano, trabalhador como o cubano, mas sem direito a saúde e educação, como o cubano. Acho que ganhariam mais se ficassem quietos e cristalizassem a ilha como velho reduto revolucionário pretensamente assimilado pelo capitalismo, mas compreendo os temores, afinal os clichês marxistas, povo na rua, povo organizado, povo armado, se mostram sempre eficientes, no ocidente, no oriente, no médio oriente. A comunidade da escola da Lagoa da Conceição não ganhou só dez nos quesitos solidariedade e ousadia, mas em muitos outros e consagrou-se campeã deste carnaval, lembrando, povo na rua, povo organizado, o povo da União da Ilha levou à risca esta máxima.
 
No dia internacional de luta das mulheres após debater e compartilhar com Aleida Guevara desfilamos novamente na passarela Nego Quirido, era o desfile das campeãs. No dia seguinte haveria mais um encontro com Aleida durante o qual eu já estaria em trânsito para Porto Alegre, privada de ouvir uma mulher cujo compromisso parece ser com a verdade seja esta doce ou acre para nós. Durante minha estadia no estado passei boa parte do tempo na praia da Ferrugem assistindo chocada ao turismo sugador, alienado, entorpecido, optei pelo exílio domiciliar no alto do morro na casa de amigos queridos e um gato imperdível como todos os gatos. Na capital Arnaldo e Denise devem ter me confundido com a filha do Che tamanha recepção e delicadeza na hospedagem, Denise até obrigou Arnaldo a furar um coco verde para matar o desejo da madame aqui. Já em São José fiquei em casa da familia mais atuante e numerosa da cidade, a familia do Heitor.
 
Apesar de pouquíssimo contato com o contexto político da cidade aquém do extenso e construtivo relato da mãe de Heitor e mais pelo clima festivo em que estávamos minhas impressões foram as mais pitorescas Eu perguntava para o companheiro tal à qual partido pertencia:
- PT, fui presidente, mas eu sou um comunista!
- Ah... E tu camarada eres deputado por qual partido?
- PDT, mas eu sou um comunista!
-Sim...e fulano? 
-Ah, ele é do PSOL, na verdade era, saiu.
-Mas já, mal fundamos o partido ele já saiu...E ciclano?
- Ele é do PDT, quer dizer, foi expulso mas é ainda.
- ? 
Eu? Bem, eu incomodo os petistas, faço teatro com os anarquistas e milito com os trotskistas!
 

RBS no Osso



RBS no Osso
Era o auge de três dias de ensinamentos, rituais, medicina Kaingaing.
O tradicional batizado no qual o chá frio é bebido e derramado sobre a cabeça, também serve de cura àqueles que já passaram pelo bautismo. Pajés do interior do estado estavam no Morro do Osso, localizado na zona sul de Porto Alegre, para o evento organizado pela comunidade Kaingaing que lá vive desde 2004, composta por 31 famílias.
Eu fui de ônibus Serraria que me deixou na boca do morro. A vista, o guaíba, o sábado, deslumbrantes. Até os índios o caminho é de casarões e silêncio desértico, a subida convida a perder-se e achar alguém para certificar-me de que a memória não anda tão mal é tarefa difícil. Quem existe ali são os porteiros, pintores, seguranças. Por sorte, abordei uma moradora saindo de casa, arredia abriu a janela do carro e me deu indicações. Chegando à comunidade, o cenário é outro. O conforto? Do lado de fora, entre as árvores, à sombra, as casas de madeira apenas necessárias. Muita gente, música e a alguma fumaça das ervas em queima para preparação do chá.
Não estava lá para ser batizada, curada ou passar por qualquer manifestação estranha a meu ceticismo e sim para aprender sobre ervas e rever os amigos Kaingaingues sempre ativos culturalmente e lutadores cônscios de seu direito à moradia e da garantia do respeito à sua ancestralidade.
Na fila do chá, uma repórter. Televisiva, ela anunciava em alto e bom som que seria batizada, o cacique alertou: - Será curada. Biólogos, antropólogos, amigos, registrávamos aquele encontro de pajés com nossos mega pixels. O estranhamento já estava quase brechtiano sob a literal narração de cena protagonizada pela repórter quando o “câmera”que a acompanhava escrachou de vez e bateu boca com Luis, que fotografava ao lado. A disputa? Por espaço para captar as imagens.
A discussão não teria cabimento ali, em meio aos pajés, em meio a tudo. O cacique interveio prontamente e exerceu a liderança que lhe foi incumbida, pela qual responde diariamente e, durante a qual foi covardemente baleado pela Brigada Militar em operação da SMIC em pleno Brique da Redenção. E o cacique Valdomiro disse à equipe da empresa de comunicação mais poderosa do estado que ali não era local de intolerância e prepotência, que todos ali tinham direito ao registro, que nenhum convidado seria desrespeitado e mais, que dali saíssem imediatamente e deixassem as imagens como prova cabal de quem tumultuou a cerimônia.
Candidatos de A a Z que se aliam ao diabo para ter mais dois minutinhos de tv durante as campanhas eleitorais, pasmem, o cacique pôs a RBS morro abaixo. E tudo continuou como previsto, os pajés batizando, quem desejava devidamente batizado, a música testemunhando, as câmeras registrando, eu anotando. O cacique pedindo desculpas pelo comportamento, dos outros. Meu vegetarianismo não ficou para o churrasco. O ceticismo? Nunca em relação ao ser humano, em meio a debates infindáveis e abstratos sobre democracia e direito na sociedade de classes pós-moderna, o cacique provou que sua ancestralidade entende de democracia, direito e dignidade. Que democracia é qualquer coisa menos o aparente multiculturalismo apresentado pelo monopolismo.
A disputa por espaço? Disso o Maurício, a Ione, o Jayme, a Marlene entendem muito bem, afinal, seus “empreendimentos” de RBS a MAIOJAMA desejam, de um jeito ou de outro, estar no morro para captar as melhores imagens.

Hay una tierra


Hay una tierra
donde la tierra reclama sus aguas
donde las hojas reclaman sus palabras
un hombre reclama día y noche
y reclama de la tierra seca
                de las hojas blancas
                del día y de la noche.