domingo, 12 de fevereiro de 2012

Makeup para a cup


Se os domingos tem sido um tanto rotineiros apesar de prazerosos (leituras sobre a guerra civil espanhola ainda e por muito tempo) a previsibilidade acaba às vésperas das segunda-feiras. Os acontecimentos imprevisíveis de um derradeiro domingo de fevereiro na Cidade Baixa de Porto Alegre, na atual conjuntura, não são nenhum fevereiro russo, em conjuntura revolucionária, mas me rendem uma dez crônicas para abalar o blog.

Como qualquer processo criativo, no qual se está intensamente envolvida, a construção da personagem Tereza Carrar extrapola as horas de ensaio e me invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, exige predisposição para detalhes mundanos e humanos que contribuam em sua formação. O trabalho automatizado e mecânico, também invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, mas esse neurotiza as pessoas em tempos modernos. Quem cria enlouquece com lucidez, com relativa lucidez - hoje despertei espreguiçando com as mãos floreando em movimentos flamencos (!). A pausa no trabalho corpóreo aos domingos não obedece nenhum resquício religioso que possa restar-me, mas os dos companheiros peruanos que organizam almoços dominicais no Comitê Latinoamericano religiosamente. Passo o dia a ler sobre o período histórico e mais previsivel que o domingo, só o papel contrarrevolucionário que a socialdemocracia cumpre em diferentes períodos históricos.

Entre uma página e outra, um mate e outro, um afazer doméstico e outro, um adolescente e outro, um gato e outro, um lanchinho e muitos outros, foram várias passagens pela janela até que decidi, o final da tarde seria para um charuto na galeria - os textos iriam junto claro. Com aquele frio no leste europeu é quase um crime não aproveitar as tardinhas de verão, sabe-se lá que nos espera...

Na ida para a galeria encontrei Débora, que mais tarde me acompanhou e passamos rapidamente da ditadura militar espanhola para a ditadura civil-militar brasileira ao evocarmos o querido e legendário Tejera de Ré, o Minhoca, companheiro destacado na resistência que, recentemente, deixou um número sem fim de amig@s e sinceras homenagens.

Depois de levar Deb em casa voltei reparando na quantidade enorme de "papa entulhos" que havia emergido no bairro devido à notificação autoritária que a Prefeitura enviou aos moradores intimando a arrumar urgentemente as calçadas - makeup para a cup. Eu havia passado um mes inteiro catando um daqueles para livrar-me dos ferros velhos que, há tempos estorvavam, na casa e quando achei fui espirituosamente perguntar à vizinha (distante, porém, vizinha) se poderia levar umas coisinhas. À pergunta seguiu-se uma ladainha infindável sobre como todo mundo jogava qualquer coisa no tal "papa entulho" dela ao invés de jogar no container (socorro!!!aquilo é lugar de lixo orgânico), que logo excederia em peso, que certamente cobrariam multa e mais uma porção de coisas - deve ter achado que meus ouvidos eram container também. Passada aquela mal sucedida empreitada, o atual contingente de "papa entulhos" era o paraíso na terra, ou melhor no asfalto, em instantes voltaria com boa parte da sucata.

Quase meia-noite, uma parada na cozinha só para um macarrão, outra parada na janela só para não perder o costume, toca o telefone. O amigo uruguaio conta que havia passado na praça para a qual nesse então eu olhava com ares de assassina a vestir as luvas de raspa (herança da carpintaria de formas) decidida a carregar os ferros. Elbio é a educação personificada, devo ser a única pessoa para a qual ele se atreve a ligar num domingo tarde da noite, talvez por ser a única com séria probabilidade a orquestrar uma tarefa no "papa entulho" num domingo tarde da noite. Terminada a conversa, me fui.

- Rachel, vou levar o ferro velho, já volto.
- Quer ajuda?
- Quero, mas só tenho um par de luvas, tira o vestido, troca de roupa.

Digamos que ela captou bem o espírito da coisa e se vestiu bem propícia à atividade, colocou a roupa mais rasgada que tinha e lá fomos nós carregadas. Apesar do peso pude dar boas risadas quando passamos por uma patotinha de guris que bem que teriam se fresqueado caso ela ainda estivesse no vestido, naquelas circunstâncias só vimos as caras de espanto - a visão era de dois seres aparentemente do sexo feminino surgidos das trevas cobertas por materiais dos mais variados.

Depois de depositarmos a sucata "pé por pé" para evitar o flagrante no papa entulho alheio, Rachel seguiu pelo lado da rua mais obscuro e inóspito para voltar para casa, meu instinto para o perigo só funciona com baratas mas meu instinto antisséptico é bem ativo e sabendo que aquela parte da rua cheia de moitinhas é um verdadeiro banheiro a céu aberto saltei:

- Vamos do outro lado.

Diferente de nós, um rapaz optou por tomar o lado escuro da rua, mas depois de uns cem metros de conversa quando chegávamos à esquina, percebi que o caminhar dele afunilava e, finalmente, atravessava em nossa direção, alertei Rachel e prontamente revertemos o caminho retornando para o trecho, movimentado e iluminado, do qual vínhamos. Não deu tempo, o homem nos alcançou, tomei a frente e disse que não tinha nada, ele insistiu para que desse o celular que estava no bolso da bermuda (meus amigos ligam domingo a altas horas, ora), eu repeti que nada tinha, ele fez um gesto de possuir algum objeto na parte inferior do abdome (acho que se havia algum objeto ali era meramente sexual), lhe agarrei as mãos (não desperdiçaria a oportunidade com minhas luvas de raspa fatais), mandei Rachel correr (ela não correu, andou um pouquinho o que aumentou minha tensão) e começei a gritar alto o suficiente ao ponto dos moradores dos arredores mesmo assim conseguirem fazer vista grossa, ele ficou sem reação e se foi.

Novamente no extremo iluminado da rua perguntei ao garçom do bar se não havia escutado os gritos, disse nada ter ouvido - a visão do rapaz deve ser mais aguçada que a audição a julgar que, quando passo de saia, está sempre atento - me perguntou como era o cara, lhe dei a descrição e ao mesmo tempo me surgiu que era parecido com Jonatan, um rapaz em situação de rua que conheço há anos, uma vez um vulto emergiu de uma praça em frente à qual eu passava às tres da manhã. Naquela ocasião pensei:... estou ferrada, a essa hora, essa praça... e aquele vulto saindo dela. O vulto em questão era Jonatan e disse: - Oi! Jonatan era irmão de Pablo, o qual conheci enquanto vendia docinhos na rua há uns dez anos e o qual, com seus dez anos talvez, me pedia os negrinhos que não podia dar mas dava. Foi com Luara, enquanto vendíamos caipirinha e leite de onça na rua há uns oito anos, que juntamos as histórias, não lembro como os associamos e qual deles ela conheceu mas de fato se tratava de dois irmãos que moravam na rua separados, Pablo cada dia mais corrompido e drogado, Jonatan educado e sempre atrás de "bicos".

O garçom sugeriu comunicar a Brigada Militar, pensei em ligar e denunciar uma manifestação de professores ou contra o aumento das passagens de ônibus, o que garantiria a agilidade do serviço, mas preferi voltar para casa. Assim que passou uma família inteira "pegamos carona" e caminhamos juntos, eu não havia visto o sujeito sumir no horizonte, desconfiei que estivesse por ali à espreita. Caminhando e contando e seguindo o povão, estava a narrar o acontecido quando atravessa em nossa direção o mesmissimo homem que tentara roubar-me, vi que era o mesmo pela roupa, meio perplexo me viu no meio das pessoas, completamente perplexa o pude ver com demora, os dois nos cumprimentamos, ele cínico, eu irônica. O vulto em questão era Jonatan.

Se não me reconheceu, não sei, pode haver reconhecido quando já era tarde para desistir da abordagem, pode haver reconhecido e mesmo assim investido na ação totalmente fissurado. Como não o reconheci, não sei, talvez na tensão me fique tudo nubiado, posso haver reconhecido e não haver acreditado.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pajero Sexy, Nude Full


Beirava a meia-noite quando decidi encerrar meu domingo que, havia sido inteiro dedicado ao estudo da guerra civil espanhola, depois de adentrar em pormenores sobre a Alsácia-Lorena - é sabido que a Alsácia-Lorena não fica na España mas é como minha Amiga Lorena, mesmo sem querer, consegue gerar problemas de dimensões internacionais.


Não faz muito convidei Lorena para uma saída noturna, a noite seria uma criança, pelo menos até a meia-noite que é o horário em que começo a achar a noite uma criança chata e repetitiva e Lorena volta para casa cuidar suas crianças que de metáfóricas não têm nada. Estava tudo correndo às mil maravilhas, fora o fato dela estar escorrendo às mil maravilhas em função do calor insuportável que assola a cidade, eu já bebia bem feliz mas Lorena mal havia encostado no copo quando me alertou sobre um embrionário mal-estar no exato momento em que começou a tocar um tango, naquele instante poderia ser o Freud a trovar sobre o mal-estar na civilização, peguei Lorena jogamos mesa para um lado cadeiras para o outro e tangueamos nomás como si fuera esta noche la última vez.



E provavelmente tenha sido a última vez naquele lugar, porque eu mal havia saído da pose final e Lorena me olha: - Voy a vomitar ahora. Mas uma corridinha até o banheiro não seria impossível, numa angustia digna de um bom tango Lore segurou firme até lá, impossível foi achar o banheiro disponível. Depois de invadir a cozinha e pegar a primeira coisa vomitável que vi pela frente (uma caixa de papelão) veio o estrago e foi um papelão só, quando fomos abordadas naquela inevitável ação, deixei cair a caixa ao que o conteúdo se espalhou pelo chão para acabar de vez com qualquer possibilidade de ocultação e ocasionar fatal constrangimento. Enquanto eu limpava o chão com esfregão Lorena pulava ao meu redor: - Mirá! Mejoré, estoy bien ya! O "melhorei" dela era um melhorei tão pueril quanto o de uma criança resfriada que insiste em tomar banho de mangueira, no instante em que me prestei a parar o frenesi do esfregão e lhe olhei na cara parecia Gasparzinho, o fantasminha camarada, uma coisa transparente falando sem parar.

A Alsácia-Lorena e a Lorena rendem para uma boa historiadora e para uma boa amiga, respectivamente, capítulos copiosos que merecem ser escritos, por enquanto me resumo à crônica do fim de domingo. Depois de adentrar nos pormenores, beirar a meia-noite, refletir sobre a Alsácia e a Lorena, me plantei na frente da televisão para pintar as unhas (pior que ler só no domingo é ler no domingo e achar que leu demais...). Pintar as unhas não tem sido um evento raro depois que inventei de arranhar o chão na partitura de movimentos que criei para a personagem de Bertolt Brecht, Tereza Carrar, cuja história se passa na Andaluzia em 1936, o esmalte ajuda a proteger as unhas, mesmo que o nome da cor "Sexy Nude", a qual comprei sem achar grande coisa e resultou ficar lindíssima nas mãos, não denuncie proteger coisa alguma. Mas futilidade de comunista não dura muito, foi quando terminei a mão esquerda que meu "momento perua" foi interrompido. Já havia escutado uma sirene silenciar muito próximo - sempre que acontece penso que é um péssimo sinal pois significa que houve o óbito - outras se seguiram e igualmente silenciaram tão próximas quanto a primeira. Não pensei duas vezes, meu lado investigativo (descobrir em primeira mão) ou meu lado comunista (descobrir em primeira mão para traduzir aos vizinhos no dia seguinte depois de uma avaliação) superou meu lado paysano (esperar o dia seguinte para perguntar ao jornalista, ao comunista e aumentar em cem o número de mortos).

Se saísse do jeito que estava teria que torcer para as sirenes não serem da polícia e, pela terceira vez, ser detida não por ataque violento à ordem pública mas ao pudor, pesquei uma minissaia no armário e tentei mas não houve jeito, foi-se o esmalte da mão esquerda que ainda estava fresco, era demais querer uma unha bem pintada para poder arranhar o piso, saí noite adentro descabelada, com minha saia de pirigueti e com uma mão feita de "Sexy Nude" e a outra não, caso fosse uma batida policial no inferninho da esquina não voltava para casa tão cedo.

O "acidente" (não considero que os quase diários eventos desastrosos com automóveis nesta rua sejam acidentes, sempre antes de ouvir as batidas ouço a velocidade enlouquecida com que se deslocam) envolveu, além de seis pessoas, uma Pajero Full e um Gol. Desde minha chegada ao local até minha saída constatei o trânsito de, no mínimo, nove veículos de auxílio entre ambulâncias, carros de bombeiros, e viaturas da brigada militar e EPTC, do Gol restaram ferragens e pessoas presas nelas.

A barbárie do trânsito rodoviário e urbano é, em última instância, gestada numa mesma produção em série. Ao volante o indivíduo fútil, massificado, colonizado, explorado, oprimido, desvalorizado que acredita possuir valor apenas dentro de um latão com financiamento a perder de vista, na traseira desse indivíduo irresponsável, uma das indústrias mais poderosas do mundo, pressionando governos a fomentar crédito e isentar dos mais variados impostos sua mercadoria no esforço para evitar redução de lucros, o custo é imediatamente humano (a propaganda ofensiva confere ao fetiche poderes superhumanos e desmedidos que se traduzem em desastres a cada minuto), mediatamente planetário (a agressão ambiental é acelerada pela poluição causada por milhares de veículos em circulação em cada país) e alarmantemente público (segundo maior problema de saúde pública no Brasil com ocupação de 55% dos leitos hospitalares sem contar as doenças respiratórias que matam três crianças por dia em São Paulo). O governo brasileiro em sua política econômica sempre pronta a promover o "aquecimento" da economia que nada mais é que o consumismo exagerado é imediatamente, mediatamente e alarmantemente anti-ético. O único sinal a frear o carro-chefe da America Latina em suas importações automotivas foi a balança comercial, a balança da justiça social definitivamente não é o que mais importa à socialdemocracia brasileira.


A esquina, além de tomada pelos carros públicos e acidentados, contava com um bom número de pessoas curiosas (as quais somos chamadas de populares pelo jornalismo) e, na hora em que parece ter havido mais movimentação e chegou a formar-se um pequeno corre-corre, apareceu o que não poderia faltar: um cachorro. O cachorro era vira-lata, não acompanhava agente de segurança ou socorrista algum, a cidade baixa não é um bairro com número expressivo de vira-latas - o que mais se vê são cachorros domésticos presos às coleiras dos donos - mas asserindo o que é quase tão antigo quanto a própria tragédia o vira-lata emergiu com aquela capacidade dos cachorros de estar sempre em meio ao caos como que para ajudar em alguma coisa.


Assim que vi um jornalista agucei os ouvidos para saber do parecer "formal" do ocorrido visto que não havia vítimas fatais nem gravemente feridas, ao menos aparentemente. Se há algo que sufoca a jornalista que nunca serei, é essa incapacidade para panoramas técnicos ou mesmo essenciais mas que me escapam por sua materialidade incompatível com a abstração que me acompanha, enquanto eu observava bombeiros em ação, vizinhos que nunca havia visto no bairro e, principalmente o cachorro emergindo no caos, algumas pessoas a meu lado faziam uma análise perita sobre o lado do carro batido, a porta atingida, a umidade relativa do ar no exato momento da colisão, aliás, nem sei para que existem técnicos especializados nisso, vox populi, vox dei... Embora chegado por último imaginei que, aquele homem de mente perspicaz para o trato da notícia, com certeza arrasaria todo meu esforço tardio por apreender o que havia de mais concreto e lógico naquele choque, o brigadiano prontamente se dispôs a responder e eu estava a uma distância da qual ouvia perfeitamente:


- Nomes?

- Fulano, Ciclana, Mengano.

- Motivo?

- Provavelmente atravessou o sinal vermelho.

- Estado?

- Regular.

- Obrigada.


Pronto. A devassa ficou para o fotógrafo que por pouco não entrou na ambulância para registrar imagens até do tecido adiposo do socorrido. Me pergunto se é realmente de utilidade pública veicular três nomes que só dizem respeito às suas famílias e uma foto enorme da coisa, mas eu me pergunto tanta coisa... Fato é que aquela Pajero Full passa não só por cima de palha mas de um monte de outras coisas e é capaz de amassar fullpletamente outro carro. Fatídico deve ser sair com ela para qualquer outro país da América Latina, a etimologia para pajero é de domínio popular .


Utilidade pública mesmo é o relato de George Orwell sobre o período em que lutou nas milícias de defesa da república española durante a guerra civil. Apesar de certo preciosismo típico do inglês desconfio que também houvesse um esforço seu na apreensão total e racional dos fatos, mas não se torna forçado na forma - pior coisa que há é o distraído tentando dar uma de exato, um desastre. A ótima recomendação de Mário Maestri antecipou a pilha de leituras cedidas generosa e entusiasmadamente por Enrique Padrós, dois professores e historiadores cuja atuação extrapola as cátedras acadêmicas na produção e democratização de conhecimento.


O relato de Orwell é full. Franco pisou no povo espanhol como se pisa em palha. O capitalismo ficou nude perante o mundo.