quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

TRAZ A ALEGRIA PARA OS FILHOS TEUS!


Como sempre, chegando às vésperas do desfile na quadra da Bambas, tomo conhecimento do tema enredo: a águia altaneira, símbolo da escola. Fico feliz, temo pelos temas que tentem agradar a alguém ou a todos...ou quando se fala de índios ou de negros, às vezes acontece de algo importante ser retratado de maneira ingênua, prefiro algo ingênuo sendo tratado com importância. A Bambas não tem patrocínio privado o que nos livra de abrir as pernas para qualquer Namorado - em 2009 uma escola de samba da cidade recebeu patrocínio de arrozeiros.


Um dia antes do desfile a fantasia ficou pronta, normal, é isso mesmo. Peguei um táxi na quadra para carregar a alegoria, mas o taxista era negão, carioca, filho de milico do tempo do Getúlio, e não gosta de carnaval nem de comunista e a passageira, uma branquela, uruguaia, carnavalesca e comunista, e não gosta de filho de milico do tempo do Getúlio. O debate foi tão empolgado que até erramos o caminho, esqueci para onde ia e ele para onde me levava, parecia samba de crioulo doido. Fiz um trecho a pé e encontrei com algumas clientes da loja em que trabalho: - Quero desfilar ano que vem também, que escola é?
e alguns catadores de lixo: - Azul e Branco...é Bambas né? Sou bambista também.

A sexta-feira que inaugurava os desfiles era a véspera do último dia de uma semana de trabalho cansativa, assim que terminasse a passagem da escola (última a desfilar...) voltaria ao trabalho. Em casa comecei a arrumar a fantasia e acompanhei algo da primeira escola a desfilar pela televisão, descobri que o cara com jeitão de jazzista norte-americano ao qual vendo pão sem glúten é Luiz Armando Vaz...Já era madrugada quando abri a persiana e vi que chovia, e chovia também mal encarado na rua. Azar, peguei minhas penas azuis e voei rumo ao camelódromo pegar um ônibus pro sambódromo. O Porto Seco deve ser o único lugar iluminado na região, sempre havia feito o trajeto em bando, distraída e agora reparava o quanto era inóspito, o ônibus parecia um trem fantasma. A iluminação era mais residencial que pública. A certa altura entrou um branco na lotação, achei que fosse ladrão.

No barracão a velha guarda, bela guarda, a bateria passando a toque de caixa, para dar espaço me grudei na velharada, ainda vou ser enquadrada no estatuto do idoso por assédio...E enquanto a velha guarda só ria o resto da escola corria e foi-se a hora... tá na hora. Na coordenação de minha ala Elaine e Fábio, desfilo sempre na ala que aparece, mas exibida que sou me acho a rainha da bateria...dois dias antes estou tomando água de coco para sambar até desidratar, a Flávia tira onda perguntando da "globeleza", mas longos trechos da passarela estavam tão escorregadios que eu estava a desfilar feito uma gueixa (globeleza do Japão), controvérsias à parte, o motivo parece ter sido a pintura feita às pressas, para adequar o local e impedir a suspensão dos desfiles, diluída na água da chuva que caía.

Em meio ao desfile vejo desde a avenida, na arquibancada, dona Margarete em êxtase por me ver na primeira ala da escola, quase atirou seu Hélio e a Emanuelle no meio do carnaval de tão emocionada, fiz um esforço enorme para não comungar daquela histeria coletiva protagonizada pelos três, mas devem ter me escapado uns dois tchauzinhos bobos (vai que perde ponto...).

Eis o ponto, perder ponto. Já quase no término de um brilhante desfile caracterizado pela sempre emocionada e aguerrida dedicação de seus componentes, após haver enfrentado apenas alguns percalços, quando já me encontrava na dispersão é que vem a notícia - é impossível saber o que acontece além ou aquém de alguns poucos metros da própria ala ou carro alegórico - um carro parou por excesso de peso e seus ocupantes concluíram o desfile no chão. Ainda tentávamos assimilar quando irrompe na dispersão o presidente da escola, Cleomar, sendo amparado, aos prantos pelo acontecido.Um carnaval pode ser comparado a uma peça de teatro, a um jogo de futebol, se trabalha um ano inteiro para apresentar tudo em uma hora, mas o teatro pode ter uma temporada inteira para redimir uma falha na estreia, um time pode ter um segundo jogo para mostrar um gol, a escola de samba não tem perdão. O desalento era geral apesar do samba enredo ser entoado alto e uníssono mesmo já terminado o desfile.

Geral também foi o comentário, muito alardeado pela mídia, de que a escola estaria fora da disputa do título de campeã e que este seria decidido no segundo dia de desfiles. Tão alardeado que até nós acreditamos. Só tem uma coisa que costuma ser pior que um comentarista: um jurado. Já estava resignada, após anos sem acompanhar os desfiles pela televisão comprovei principalmente na transmissão do Rio de Janeiro como patrocinadores, rede Globo e suas respectivas exigem que a mercadoria carnaval seja a supremacia da técnica e da tecnologia, cujo elemento popular de maior destaque é a bunda. Coreógrafos caríssimos, rainhas globais, e carros muito hollywoodianos são os requisitos do atual bom carnaval. a bateria...esta parece ser o baluarte da criatividade inatingível pela patrola mercadológica, ela se impõe a qualquer imposição, é magistral. Meu amigo Cláudio que não entende o carnaval... duas baterias da Mangueira numa avenida são um escândalo, dirigir duas baterias cujos componentes não são eruditos disciplinados e sim faxineiros, taxistas, seguranças, padeiros, pedreiros, em meio a quatro mil componentes é um escândalo, mas eu sou gente rasteira pergunte ao Buarque de Holanda o que ele vê na Mangueira.


Pensar que a Trovão Azul - bateria da Bambas que é uma verdadeira tempestade - as bem acabadas fantasias e a emocionada nação azul e branco estariam inexoravelmente fora da disputa por problemas em uma parte do todo parecia injusto, porém, factível. Havia algo, somente algo, de lógico nisso, o defeito no carro poderia retardar a evolução, mas era o último carro...está bem, vá lá, atrasou dois minutos...o povo espera o ano inteiro pelo carnaval, o que são mais dois minutos de alegria. Alegria perante a tecnocracia do mercado que infiltra o carnaval, assim como a política. A profissionalização do carnaval é inevitável e saudável, assim como na política. Cumprir com quesitos torna possível o julgamento pois somente uma escola levará o título, mas não pode ser que um problema bem superado anule um todo excepcional, Me lembro da primeira peça de teatro na escola da Terreira da Tribo, a alpargata de minha personagem que ameaçava a protagonista com palavras, escapou em cena e na mesma hora improvisei segurando o sapato na mão ameaçando-a fisicamente. Não deveria eu ganhar no quesito improviso? Não deveria uma modelo que cai numa passarela e se levanta com toda a graça receber mais propostas de trabalho pelo domínio da situação?

Quase não acreditei no resultado da apuração, imagino a velha guarda segurando o velho coração. Os jurados surpreenderam ao provar que não são reféns do reinado da técnica sobre a alegria e o que predominou neste carnaval foi o trecho do samba enredo em menção à águia:

Traz a alegria para os filhos teus!

Parabéns Bambas da Orgia, campeã do carnaval de Porto Alegre.