domingo, 6 de dezembro de 2015

Os fantasmas e as almas penadas

Há muitos anos adentrei numa aula de grego a convite de minha amiga Karine, à época estudante de Filosofia, passar despercebida com este tamanho não era uma opção, se havia algo que fazia jus a Schopenhauer ali era toda minha corporeidade...Lá pelas tantas o professor escreve um verbo no quadro como exemplo: ristó (colocar em pé), a palavra restaurante retroativamente fez todo o sentido para mim e também o dito: "saco vazio não para em pé".

Todos os dias às oito colocamos o restaurante em pé. Ao meio-dia, centenas de sacos vazios sentarão para parar em pé. São operários das obras, seguranças dos prédios, faxineiras das casas do bairro rico. Há duas tv's enormes claro. Quando o telejornal noticiou o esquema corrupto do deputado Jardel e seus funcionários fantasmas meu colega carregando na voz as horas de trabalho falou: - Aqui não tem funcionário fantasma...Eu, deixando meu ateísmo de lado lhe respondi:- Só se formos almas penadas. Ele me olhou como se estivesse vendo um fantasma...

A responsável pelo restaurante (que também faz as vezes de cozinheira e descasca laranjas com a gente) tem apenas 21 anos. Mas um recorrente infantilismo se nota nos funcionários, no mundo do trabalho é o poder que pauta o etário. Outra cozinheira me contou que tem 4 filhos: - Uma morta e três vivos. Um casal sai de lá direto para atender até tarde da noite num armazém, foram criados para o work-a-holic do trabalho forçado, eu sou uma uruguaia no ninho.

Em tempos modernos Chaplin continua vigorando para além do trabalho operário, há um fordismo nos serviços prestados. Saio dos locais nos quais trabalho garçoneteando, deixando os outros passar na minha frente, oferecendo guardanapo, dizendo "às ordens" depois do "obrigado". Minha professora de dança escuta o "sora" das aluninhas chamando em casa, na rua, no carro. No pequeno comércio o patrão é outro quando se vê os donos trabalhando como qualquer condenado. Ser rico é ter tempo e dinheiro nunca os dois separados. Claro que nada é simples assim, e assim divididos estamos, trabalhadores proprietários aspirando ser grandões e trabalhadores sindicalizados chamando parte dos seus de lumpemproletariado. Não vou fingir que me safo, brigo com os operários quando pegam o prato da salada para servir a sobremesa, é um restaurante não o refeitório da empreiteira, não gosto de trabalhador arriado.

De tanto adentrar em aulas com todo meu Schopenhauer, de tanto adentrar em lutas com meu lumpemproletariado, fiz muitos amig@s acadêmicos e boa pare deles transparece uma espécie de gratidão quase envergonhada em relação ao proletário. Como se @s assombrasse o fantasma dos não privilegiados. Não resta dúvida que o domínio da ideologia os penetra para além de suas teorias, a burguesia lhes roubou tanto quanto à maioria do povo e lhes injetou a culpa em troca da academia.

A Venezuela tem seus fantasmas, típico de um governo militarizado em qualquer parte do mundo, a Venezuela de 89 tem seus incontáveis fantasmas, típico de um governo democrático latino-americano. O Brasil é o país da diversidade, os fantasmas são quase todos negros e a maioria dos brancos almas penadas. Nossa missão é resolver as coisas mundanas que não nos deixam descansar em paz, resolvê-las num conjunto espectral sabendo que continuaremos a brigar porque uns queremos virar a mesa, outros se entregaram de bandeja, e também pelo tamanho do prato da sobremesa.