segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Una

Uno, busca lleno de esperanzas
el camino que los sueños
prometieron a sus ansias...
Sabe que la lucha es cruel
y es mucha, pero lucha y se desangra
por la fe que lo empecina...

Uno, Discepolo.



Una

- Como tu aguenta essa cabeça efervescente? Esta loja deve ser a terapia dela...

Foi assim que Bárbara Benz, cliente do comércio em que trabalho, artista plástica talentosa, querida e delicada me fez escorregar para debaixo do balcão da loja ao largar essa para meu chefe numa faceta franco atiradora que não lhe conhecia. Bárbara Benz passou por cima de mim feito uma Mercedez Benz.

De fato entre a loja e eu há uma dialética, eu conto moedinhas (isso ajuda mesmo a focar), conto sementinhas, conto de um tudo para as velhinhas. Em contrapartida, enlouqueço bastante os outros integrantes da empresa, lhes enlouqueço os horários, as cabeças e as vistas. O pequeno banheiro vira camarim umas tres vezes ao dia, e dele saio propícia para o teatro, para o tango, para a academia, para o que der e vier. O chefe/DJ ajuda e quando me vê entrar de mala e cuia no banheiro troca a música ambiente, sempre clássica, por um tango ou algum jazz que acompanhe melhor o turbilhão que vai passar por aquele metro quadrado. As colegas já tem até um cronograma de revezamento para ver quem fica até mais tarde em meu lugar, amadas.

Sábado era a vez do tango, mas a semana já havia começado com ele. Mirian, minha professora, na tentativa de conciliar minha falta de horários e a consequente ausência nos ensaios, me delegou uma apresentação "solo", ou melhor, sola, solita nomás. Na mais absoluta inocência me sugeriu que recitasse uma poesia em homenagem a Buenos Aires. Uma uruguaya, de Paysandú, uma sanducera, recitando um tango em homenagem a Buenos Aires? A Buenos Aires que esmagou a luta de Artigas e do povo da Banda Oriental, que nos quer usurpar a nacionalidade de Gardel, que sonha em fazer alfajores melhores que os nossos? Nem respondi, só ri...

Mas chauvinismos à parte fui atrás de algum tango, argentino ou uruguaio, com espanhol acessível a lusofalantes, que pudesse expressar a nostalgia e o sentir do povo rioplatense. E não achei nada mais nostálgico e rioplatense que o cubano Ibrahim Ferrer cantando "Uno", como sempre, terminei com um cubano, fumando um habano. Minha vida seria tão mais fácil e feliz se o Uruguay fizesse fronteira com Cuba e não com a Argentina, sem contar que o que a Argentina teve de melhor, el Che, perdeu pra Cuba mesmo.

O desafio da semana foi criar uma partitura de movimentos para a declamação, recitando o trecho escolhido do tango no compasso da música mas sem cantar, descobrindo eixo nos passos que, criados para serem executados a dois num equilíbrio de corpos, seriam feitos por apenas uma pessoa, com poucas horas de ensaio. Nenhum aperto que não tenha passado no Grupo Trilho de Teatro Popular e justo na semana emocionante em que o grupo foi premiado com merecidos tres Tibicueras de Teatro Infantil e o Gremio Esportivo Ferrinho sediou a assinatura da regulamentação da Vila dos Ferroviários, conquistas importantes comemoradas pelo Trilho e pelos Ferroviários.

As escalas de terça a sexta foram casa, loja, comitê. A casa fica a cinco minutos da loja à direita e o comitê fica a cinco minutos da loja à esquerda, tudo voando claro. No bar/ comitê Latinoamericano, tive o espaço, a tranquilidade, e a beleza necessária para criar e ensaiar a participação que faria na apresentação de tango. Já era sexta-feira e eu ainda acrescentava passos, passos que comecei a aprender há um ano e mal domino, mas vamos lá, pensei em ensaiar às sete e meia da manhã do sábado da apresentação, antes de começar a trabalhar, ficaria mais segura. Roberto do comitê me olhou de um jeito que só faltou dizer: pirou cara-pálida? Mas educadamente me disse não ser possível.

No sábado às cinco da manhã eu não fazia ideia de onde estava mas percebi que dormia em casa e o celular apitava, pensei que fosse algum amigo "tarja-preta" daqueles que não tem horário para ligar ou enviar mensagens quando estão deprês. Demorei mais ainda para entender a mensagem, mas era clara como o dia: Oi Ana, podes vir às 7:30 ensaiar. Era Roberto (que deve achar que todo mundo vai dormir às cinco da manhã como ele e os outros donos de bares da cidade) na maior das boas intenções. Olhei pro espelho e quase não me vi de tão inchados e vermelhos de sono que me estavam os olhos, pensei em ensaiar toda capenga mesmo mas lembrei que havia deixado a chave do comitê em minha bolsa na loja, na loja fechada. O dono da loja deveria estar se preparando para fazer as compras na tradicional feira orgânica da José Bonifácio que abastece nossa pequena feira orgânica na Venâncio Aires. Não conseguiria nem ensaiar nem mais dormir, pensei até em fazer a feira com o chefe (programão de sábado de madrugada!) e, por sorte, antes de pensar em algo mais já havia tombado na cama novamente.

No final da tarde, depois de atravessar a loja e os clientes toda caracterizada como quem atravessa o salão pronta para bailar, fui direto à casa de Mirian que me levaria para a apresentação, e me aliviou dizendo que poderia ensaiar por uma hora ali até ela aprontar-se. Na sala espelhada de piso deslizante da professora, coloquei a música e, depois de pedir para ela não ver antes de finalizar detalhes, retomei os ensaios. Dois minutos depois de ter atendido bulhufas meus apelos, Mirian adentra a sala em lágrimas comovida com aquele tango quase cantado, quase cubano, quase acabado.

Assim que Lorena chegou, Dorgel e Mirian saíram com o carro carregado de sacolas, araras para figurinos, malas carregadas e duas uruguayas "muy malas". O caminho era longo e cheio de paradas para que, onde cabem cinco, coubessem uns dez. Antes mesmo de subirem Ariana e Takeda, Lorena e eu ensurdecemos os professores num rioplatense metralhado e alto cujas variações se resumiam ao montevideano lunfardo, carregado de gírias capitais dela e o paysano sem "esses", rasgado, quase árabe meu. O fato de termos passado em questão de minutos por todos os assuntos da vida e pelos assuntos de toda a vida dos outros pode haver contribuido consideravelmente para dar emoção à charla até nos depararmos com as caras estupefatas dos dois que não conseguiram emitir som algum perante aquela epopeia gaucha.

Já na casa de Regina para um breve aquecimento, nos organizamos em caravana para chegar ao local da apresentação junto com a chuva. Finalmente lá Fortuna nos esperava metido a anfitrião e quase o mordi quando veio me oferecendo as comidas do camarim cujas opções eram carne de vaca com alguma fritura, carne de frango com alguma outra fritura, e carne frita. Ele faria um bêbado na entrada de um dos tangos, éramos literalmente o bêbado e a equilibrista, ele agarrado em sua garrafa de 51 para adentrar no personagem e eu tentando fazer o 8 atrás sem adentrar o chão. Ana Mari e Regina protagonizaram uma cena hollywodiana quando, numa pernada dupla, fizeram voar pelos ares a bandeja do garçom que passava com as carnes e as frituras que se espalharam aos quatro ventos, qué lo tiró, qué patada...

As combinações finais e a preparação para a entrada são sempre o estopim para alguma crise, e a completa patetice do gênero antagônico conseguiu tirar Lorena do sério, eles estavam más perdidos que galleta en boca de vieja, se calentó la Lore. Crise superada começou o tango ao enunciado da própria Lorena, os tangueros ocuparam com Mirian e Dorgel mais uma pista desta cidade. Minha tarefa mais arrebatadora ali não seria a apresentação que faria só e em instantes, fui delegada como assessora de troca dos, sempre milhares, de figurinos da profe, afinal, naquele monte de malas no carro estavam todos eles. Eu cumpri minha tarefa e os figurinos também, ela estava lindona e além de dançar com Dorgel, foi acompanhada por Alfredo, argentino guapo e amigo que nos deixa no sufoco com os horários (outra vez o comércio na vida dos tangueros) mas quando chega ao salão mostra a que veio.

Nas mesas cenicamente dispostas em volta da pista, quem não dançava esperava sua vez na maior elegância. Teve tango a dos, tango a tres, tango en parejas y una milonga arrabalera. Além do público compenetrado e deslumbrado, havia o público desinteressado e mal educado, uma meia duzia de elementos que consideram a arte pano de fundo de sua vida fútil e suas conversas sobre bebidas carros e mulheres, porra, se trocar os carros por cavalos o tango fala de tudo isso, custava prestar atenção? Esperei que fossem respeitar minha apresentação baseada na palavra e na escuta, continuaram na maior algazarra, em minha frase final me dirigi até a mesa em que estavam e lhes gritei o texto, que nada... ouviram um mosquito zumbir e voltaram à festinha particular. Apesar de poluir a sonoridade tanto da declamação quanto dos tangos dançados pelo grupo, o grupelho pentelho não conseguiu tirar a emoção dos trabalhos apresentados que envolveram o restante do público que, em pé, apreciou a noite e, a convite se somou para dançar um tango final no qual mandou muito bem.

Após o término, a música tecno dominou a festa, era hora de descontrair e agora sim, cada um beber e dançar como quisesse. Foi isso que fizeram todos, Dorgel decidiu que era o astro da festa e foi para o centro requebrar, Lorena quase se descadeirou durante a Shakira, Mirian deve ter decidido que depois de dançar tão bem durante os tangos iria quebrar a rotina, deixou Dorgel boquiaberto depois de uma dancinha meio bizarra que ele não imagina de onde tenha saído. A primeira-dama do Fortuna lhe deu uma canseira, estava mais energética que Gatorade com vodka. Paola, Tô e Juliana agitaram como sempre em triângulo equilátero. Alfredo comandou as massas numa coreografia de Y.M.C.A. Alexandra é perita na civil e nas danças de salão todas. Paulo dança tango até quando toca forró.

Eu, descobri que nos vidros que enfeitavam as mesas havia alfajorzinhos uruguaios, magra com cabeça de gorda ou gorda com corpo de magra, fiquei acima de qualquer suspeita, sentada à mesa comendo um, dois, tres, quatro, cinco...alfajores. Tentei conseguir gelo para minha bebida com o garçom mas aconteceu a mesma coisa que na formatura da Fifi, eles somem, desisti da bebida e do garçom, minha relação freudiana com eles só se compara à minha relação de estrutura histérica com motoboys. O restante dos alfajores levei como cachê, ou butim de guerra se levar em consideração os elementos que não calaram a boca durante a apresentação.

Novamente na casa de Mirian para recolher algumas roupas, chamei um táxi para que andasse algumas quadras comigo até em casa. O rapaz encarregado da segurança do predio naquela noite disse ter sido bom eu ficar esperando o serviço no banquinho da entrada, que se eu esperasse na rua ele teria que ir comigo. Eu devia medir um metro a mais que ele, havia roubado alfajores na festa e apesar de bem penteada, vestida de tango, calçava um tenis enorme número quarenta, fiquei pensando o que teria levado aquele rapaz a imaginar que eu precisaria de segurança.

Na próxima apresentação quero dançar ao lado de minha amiga Angelita, outra una que faz falta.

O tango pode ser o mesmo, porque o caminho da vida será o mesmo, cheio de esperança e nostalgia intercaladas, porque unos perderam seu coração mas não há una que não tenha dado o seu.



Si yo tuviera el corazón

el corazón que di

si yo pudiera como ayer

querer sin presentir.

Si yo tuviera el corazón

el mismo que perdi.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eles mataram a polícia


Chico Buarque no rádio, maquiagem espalhada na mesa, vinho no gargalo. Só poderia ser a preparação de um grupo de atores para entrar em cena. Nosso entrar em cena, nem sempre é um "entrar em cena", pode haver algum longo trajeto até nosso espaço de apresentação, nossos camarins já foram a rua, o sindicato, a Assembleia Legislativa, a universidade federal, uma escola, e alguns deles ficavam até em teatros. Nada anormal se fosse para um grupo de teatro de rua, o que não é nosso caso.

Desta vez nosso ponto de encontro foi um belo lugar localizado no bairro agora Farroupilha (cá entre nós, Santana). Solícito e solidário como sempre, Roberto do Comitê Latinoamericano só não abriu as portas porque eu estava com a chave há tempos, neste "bar politizado", ele já me aguentou encenando, cantando, dançando, discursando, bebendo, reclamando da bebida e a última coisa que esperava é ver duas viaturas da SUSEPE estacionar na porta do local para transportar a trupe.

Nesta ocasião seríamos as estrelas (nada daquelas algemas nem do "porta malas" nada anatômico da apresentação contra o aumento da passagem de ônibus), o Grupo Trilho de Teatro Popular apresentaria seu teatro na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Recebi os motoristas com um charuto aceso numa mão e uma garrafa com vinho na outra, devem ter achado que éramos um bando de artistas pequeno-burgueses loucos para começar a revolução tomando a bastilha, infelizmente somos todos assalariad@s e a maioria disponibilizou o turno em que não trabalha, meu chefe me liberou com esperanças de que finalmente não me deixassem sair do presídio...

Já na casa prisional fomos conduzid@s a um espaço bem organizado e amplo que inclusive dispunha de pequeno palco, do qual prescindimos pois nosso teatro é sempre olho no olho e nosso distanciamento é brechtiano e não espacial. Mal havíamos começado o ensaio musical e uma agente adentrou a sala trazendo o público, interrompemos e nos posicionamos para começar "A Decisão", peça didática de Bertolt Brecht, como bem anuncia Adriana no prólogo, que traz quatro agitadores soviéticos e um jovem camarada chinês em meio à visceral polêmica sobre os métodos revolucionários e a cruel contra revolução.

A expectativa do grupo para aquela apresentação, a expectativa das mulheres que nos assistiriam, nos arrebatou uma fala que outra e nos levou a algum erro cênico que não cometemos facilmente. Os olhos de Giovanna brilharam durante toda a apresentação, mas por sorte os colegas não me aprontaram o mesmo que na apresentação feita há um ano para crianças em situação de risco (leia-se expostas à pobreza e sua violência) em São Leopoldo, quando me deparei com todos chorando já na primeira cena.

A Decisão é cheia de falas conceituais e muitas delas com entendimento restrito, a uma determinada época vivida por países marcados por momentos revolucionários ou formalizado de quem é estudioso. Foi escrita para ser realizada por militantes operários na Alemanha de 30. Nosso desafio é, desde sempre, compreendê-la e apropriar-nos da capacidade do teatro de mostrar-se por vias próprias, únicas.

Depois da formalidade e contenção dos primeiros atos, as primeiras risadas, os primeiros comentários mútuos sobre as cenas que nos chegavam aos ouvidos como bruburinho e os quais cessaram quando a agente que à distância acompanhava, reprimiu com sinal de silêncio as reações espontâneas. A quietude foi total e não repreendeu somente as mulheres sob sua autoridade mas chocou a nós cuja atuação depende muito da comunicação e reação do público e nunca havíamos visto um moderador de humores em nossas obras para adultos.

A cena mais esperada por nós e que, sabíamos, mais surpreenderia as detentas, era a "4" em que o policial que reprime trabalhadores numa fábrica - personagem brilhantemente construído e encenado por Carol - é morto durante uma briga. A fala dos operários envolvidos na briga: nós matamos um policial, foi antecipado por uma das mulheres: eles mataram a polícia.

A música, componente essencial da peça, tem arranjos inspiradores nos quais Baiano e Gabriel são um espetáculo à parte com violão, bandolim, xilofone e pequenos instrumentos dos mais variados, e é durante a trilha sonora que eu abandono a agitadora contida e ponderada e evoco uma Ana sinuosa que aflora com a dança. Em meio a quebras de quadril e olhares provocadores fitei pares de olhos pintados e algumas caras bonitas que com certeza já experiemtaram - por idade ou malícia - a sensualidade muito mais que eu, mas os olhares que encontrei deixavam claro que minha sensualidade ali estava em ser livre, em fazer o que gosto, o que acredito, em não estar maculada socialmente, minha sensualidade, ali, humilhava. Terminada a apresentação em nosso habitual debate sobre a peça, uma delas pediu o violão, eu ofereci o violão e o violonista, deixei Gabriel roxo de vergonha e para trás aquela impressão de que, naquele momento, as atrizes éramos mulheres e elas apenas detentas.

Durante o debate, uma das primeiras perguntas, justamente feita pela moça que pediu o violão, foi "se nós éramos mesmo comunistas", a do lado perguntou se é muito difícil a batalha dos atores até conseguir fazer uma novela. Os graus de alienação e consciência se assemelham e reproduzem a sociedade além grades. As perguntas não pararam por aí e continuavam sobre o texto, sobre a dificuldade de sua linguagem, sobre os atores, sobre a interpretação. Ao responder um dos questionamentos Dani disse estarmos um pouco apreensivos antes da apresentação, rapidamente uma mulher interviu indagando se essa "apreensão" se devia ao fato do local ser um PRESÍDIO. Esclarecemos que nossa angústia se devia ao tempo reduzido que tivemos para ensaiar desde que a data foi marcada, cujo fator era agravado pela falta de um ator sem o qual tivemos que alterar o roteiro. Saber que faríamos nosso teatro, que é político, pedagógico, social e nossa bandeira em defesa da justiça e da alegria, para pessoas que vivem privadas de liberdade não era angústia, era diferente, era uma emoção inusitada, inédita.


A responsável pela ponte Madre Pelletier - Grupo Trilho foi Maynar, amiga, uruguaia, siamesa na forma e no signo. Maynar viu "A Decisão" pela primeira vez em temporada no Teatro de Câmara de Porto Alegre, à época gostou e comentou, Fábio gostou do comentário dela e então estavam apresentados ela e o grupo. Psicóloga estagiária sempre colocou suas teorias em prática e através dela eu já havia participado de oficina sobre Escrita no semi-aberto feminino. Na Madre conhecemos Simone, a vice- diretora com a qual projetamos a volta e Faltemara, psicóloga, futura mãe de Lorenzo, mais conhecida como FAL (Fuzil Automático Leve), não por milica e sim por perpicaz e certeira nas conotações.


Ao despedir-me lhes disse que voltaríamos, mas que bruta eu, uma delas saltou:
- Espero não estar mais quando voltarem.