domingo, 23 de outubro de 2011

Negrita Santa



...mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da Republica Dominicana...

Ferreira Gullar, Cantada.



*foto Eduardo Quadros.



16 de outubro foi aniversário de Oscar Wilde, e meu também. Este ano a data passou sem a festa bienal que costumo oferecer a Wilde, aos amigos e a mim, na qual emagreço alguns quilos e mobilizo a família - seja ela qual for - correndo na preparação dos canapés, das pizzas uruguaias e outras iguarias, os convidados também correm quando sirvo chá amargo ao esquecer que o resto da humanidade usa açúcar nas bebidas.


Todo ano, com festas ou sem elas, Carol e eu temos um "presente perpétuo" que não é o conceito de Guy Debord mas sim um módico charuto Titan, um puro estadunidense, recíproco respectivamente em junho para ela e em outubro para mim.Tudo começou com Paulo Flores, ao concluirmos a escola de formação de atores da Terreira da Tribo e encenar nosso primeiro Brecht, ele disse que a tabacaria da peça sem charuto não era tabacaria, eu disse veementemente que não iria fumar charuto "em cena" pois ficaria viciada "em sério". Fui tão veemente e firme que, por fim, fumava até nos entreatos, nas coxias. Quando as duas nos demos conta já estávamos no dilema do ovo e da galinha, não sabíamos o que vinha primeiro, a peça ou o charuto. Improviso, esquete, fragmento, peça, tudo é motivo para ter baforada no meio, agora estamos inconsoláveis por não ter charuto no espetáculo infantil, crianças caretas...

Em junho deste ano, numa postura atípica, unilateralmente burlei nosso consenso não negociado e, apesar da oscilação das moedinhas na minha bolsa, mas com ajuda externa, lhe dei uma Mafalda, não era toda Mafalda, mas quase. Em meados de outubro, numa investida conservadora Caroline me espera no teatro com o velho Titan, em clara intenção de retomar os diálogos infindáveis que as duas travamos fumando o charuto. Acatei positivamente a resolução, um charuto de aniversário só não é melhor que o licor de marula que me dá no natal. Mas desta vez, ela não ficaria para fumar comigo e este seria apenas o começo de uma crise tabageira.

Depois de breve reunião para acertar táticas de promoção da peça em cartel, fui voando para a praça quase deserta em frente de casa aproveitar o resto de sol, e lá me instalei com as rapaduras de leite, o bloquinho do Bob Esponja e uma caneta por qualquer coisa.
O charuto, sequer acendeu.
Estava velho, mas não velho por diabo, mas velho por mal conservado. Por sorte, ainda tinha um toquinho em casa guardado, não era um palheiro mas um bom paliativo, deu tempo de atravessar a rua para buscar e ainda voltar à praça quando, ao longe, o sol chegava ao Guaíba. Não fumar o charuto e ter que pegar o toquinho foi um coito interrompido, frustrante. Só não fiquei mais frustrada que Caroline quando mandei mensagem contando o acontecido, nem respondeu.

Hoje, me apareceu com uma latinha. Era um dominicano, mas para adquirir um desses dominicanos a última coisa que se pode fazer é voto de pobreza. Depois de inauditos discursos sobre a péssima conservação do charuto anterior e forte pressão para reclamação junto à loja em que foi comprado, Carol confessou, havia customizado o charuto que eu havia lhe dado em junho do ano passado, que pouca vergonha. Quanta recessão...Que corte nos gastos!

A "Estética da Chinelagem" proposta ética e estética do Grupo Trilho, cuja filosofia é, grosso modo, aproveitar o que se tem, apresentar onde se pode, dizer o que se pensa, foi levada às últimas consequencias por Carol, que negligenciou meu paladar requintado para tabaco e meu olfato apurado para falcatrua.

Com um salário de babá, ela me comprou um charuto dominicano. Mas a estética da chinelagem não é invenção dela, e - diga-me com quem andas que te direi quem és - eu mesma já customizei presente também. No vigésimo aniversário, ganhei um vermouth de minha amigaCamila, ele ficou um bom tempo na escrivaninha esperando nova visita dela para ser aberto, mas um dia, eu não pude mais esperar. Depois de dois dias de fome fui até o Zaffari mais próximo e disse que havia comprado a bebida errada, quero trocar, perdi a notinha. Proveniente de algum mercado da Restinga, troquei o Martini em pleno Zaffari por arroz e feijão. Agora resta saber quem vai me processar primeiro, minha amica Camila ou os fratelli Zaffari.

Antes do pôr-do-sol, fui fumar meu dominicano. Sempre que vou para alguma praça inóspita para não atrapalhar ninguém com a fumaça, me aparece algum crioulo perguntando se é para Oxum, alguma adivinha dizendo que sou volátil como a fumaça, e até as pombas se chegam, acabo dividindo o charuto com uma horda, promovemos a "revitalização da praça".

Desta vez uma figura deu oi, alguma carente pensei...respondi um oi atravessado e dei inicio aos trabalhos. Já quase noite de sábado e eu me sentindo em pleno santo domingo, a mesma moça levanta da grama, era a vizinha (!), antes eu via só uma cabeça no meio de um monte de cachorros, agora era ela mesma. Que fora, fui lá desculpar-me, ela entendeu e disse que ficou pensando se havia dado oi para a pessoa errada. Coitada, deve ter sofrido um choque anafilático quando me viu virando a cara - eu que passo como um bobo alegre distribuindo ois para a vizinhança - e para completar acendo aquele canhão que espantei os cachorros todos.

Ela foi, e depois veio para perto um gurizinho que chamei para dar um panfleto da peça infantil, mas deve ter levado à risca o conselho dos pais de não se aproximar de estranhos, muito menos estranhos muito estranhos, deu meia volta. Por mim passaram dois adolescentes passeando com as cachorrinhas de apartameno, Polly pra cá, Polly pra lá... na idade deles eu estaria no mesmo gramado tomando vinho com minhas amigas, nós éramos hippies anacrônicas ou eles são muito bundinhas? Já no fim do charuto veio um cachorrinho manco mas muito ágil que se encantou com o aroma do charuto, este era doente do pé mas bom das fuças. Em Santo Domingo poderia estar na praia e não na praça...

As praias mais belas da República Dominicana, são propriedade privada de hotéis instalados às suas margens, "nativos" (leia-se pobres, negros ou negros pobres) precisam de autorização para pisar em suas areias. Sou uma nativa, mas de outra República, sou uma negrita, mas de pele branca, e desconfio que Santo Domingo não me queira, apesar de tudo, sou uma pobre diaba.

Carol,
...você é mais bonita que o Rio de Janeiro em maio
e quase tão bonita
quanto a revolução cubana.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O espetáculo e suas meritocracias 2/3


A radioatividade pós-moderna entranhou o trabalho artístico depois de algumas décadas de disputa social, a qual contou com movimentos artísticos gerados na contracultura, orgulhosos de sua estética provocativa e escatológica, quanto movimentos - não menos ingênuos - cujas teses revolucionárias e discursos de classe foram apenas injetados em moldes e estética burgueses ou aculturados.

Por outro lado, o amadurecimento de muitos deles e o aparecimento de outros também influenciados por essas duas vertentes, capazes de abalar a arte imposta em sua forma, atribuindo-lhe conteúdo próprio, com força suficiente para burlar aparatos ideológicos e repressivos do poder e alcançar setores sociais expressivos, criaram propostas que permanecem atuais embora minoritárias


Na arte da sociedade do espetáculo, foi implementada a meritoacrobacia. O indivíduo-show da arte é um acrobata. A produção artística a ser financiada pelo capital e seus agentes públicos, exige a superação do feito artístico para resultar em imagem, mercadoria, modelo vendável.

Suas divas máximas são cantoras "teens" cujo show é um verdadeiro fenômeno à parte da música que apresentam, as trocas infindáveis de roupas durante um espetáculo, os cenários providos de mil luzes e desprovidos de sentido, e as coreografias apelativas do corpo como objeto sexual ofuscam qualquer interpretação musical seja boa ou má. Mas tais setores do mercado cujo produto não é arte e sim divertimento, são apenas hegemônicos numa pirâmide contaminada pelo espetáculo até a base.

O individuo show da arte faz stand up sobre a dificuladade de extrair pasta de dente do tubo, escreve sobre o copo de requeijão, sua realidade é a mais imediata possível, seu papel no mundo é o de consumidor, se permite uma pseudocrítica do consumismo mas é incapaz de reflexão sobre as causas dos efeitos que enumera....
As artes plásticas idealizadas pelo mercado esvaziam de conteúdo e transformam em aparência, em superposição de imagens e objetos a obra de arte, com o suposto pretexto de dessacralizá-la.

Atores desesperados em alcançar a revolução tecnológica levam à exaustão mecanismos midiáticos e corpóreos a fim de, provocar e atingir, a catarsis aristotélica atualizada: o orgasmo automático no sistema límbico e suas estruturas. 


Na dança e nas artes marciais a regra é voar, depois de treinos um tanto full time estilo ginástica, outros um tanto bélicos estilo milico.
O indivíduo show é multimídia, e sua palavra de ordem: performance.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Quando eu crescer, não quero ser adulto




Só as mães de atrizes como Giovanna Zottis e Caroline Falero podem reviver passagens marcantes e emocionantes da infância de filhas já adultas ao vivo e a cores (como na tv, hd).
E lá estavam elas, olhos rasos d'água, no final de semana de estreia de "O Baú - Lembranças e Brincanças". O sábado era das crianças no Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues, e elas vieram com tudo. Entre pais e filhos mais de uma centena de pessoas.

Finalmente em cena, Dindim e Pimpolha, as meninas que num sótão - lugar não comum para nossas crianças ao mesmo tempo lugar comum para o teatro - se veem afastadas dos recursos tecnológios que garantem a diversão da maioria das crianças deste país: televisão, videogame, celular, computador. Essa "privação" trata-se, como fica claro para as crianças ao final da trama, de uma tentativa da mãe de Dindim de propor um divertimento mais subjetivo, inventivo e saudável à filha.

A espontaneidade infantil de Caroline Falero e os tipos hilários apresentados por Giovanna Zottis garantem não somente criatividade e inventividade às personagens como a toda a trama que, intencionalmente, sem excessivos recursos técnicos e grandiloquentes histórias, apresenta um espetáculo tocante, cômico e que atinge seu objetivo de comunicação com as crianças resultando também imperdível para adultos.

A peça, como todos os trabalhos produzidos pelo Grupo Trilho, acaba por ser uma metáfora de como diversão, sonho, verdade, emoção, reflexão, podem ser atingidos de maneira simples sem as ciladas de um teatro baseado no exagero de elementos cênicos, recursos midiáticos excessivos e, quase sempre, com prazos comerciais.

Ao longo de quatro dias de apresentações gratuitas, sendo que, dois dias foram dedicados ao público em geral e os outros dois a escolas ou ong's previamente agendadas, a reação do público variou sempre, mas nunca na expectativa interessada dirigida à peça que conta com sensível e gostosa trilha sonora de Sergio Baiano e iluminação funcional de Bruna Immich, aliás para as crianças a melhor iluminação parece ser mesmo a falta desta nos segundos iniciais da peça, vão ao delírio.

Se sábado era dia de estreia para o grupo, domingo era dia de estreia para Enzo - dois anos e meio - que, pela primeira vez, via uma peça de teatro. Foi durante uma das brincadeiras de Dindim e Pimpolha que, desde o público, ele derreteu a mim e aos pais: tô loco pra ir lá!
Se os pais que acompanham os filhos se divertem e sorriem praticamente todo o tempo, é quando Pimpolha reclama: "...os adultos ficam o dia inteiro trabalhando sem dar atenção às crianças e quando dão ficam bravos..." que as crianças se matam de rir dos pais, que desta vez, ficam sérios, ui, meus calos...

Na hora da música mais conhecida das crianças, Borboletinha, o coro é espontâneo, uníssono, meigo!
As campeãs de risos são, claro, as piadas que falam do pum que escapou, do chulé da princesa, rsrsrs. Os aspectos fisiológicos tão moralizados pela sociedade vigente acabam por ser objeto de descarga coletiva quando exorcizados, no caso dos adultos é o sexo, mas o chulé e o pum também fazem sucesso.

A orientação de Fábio Castilhos, numa perspectiva de direção participativa, deu objetivo à sequência das inúmeras narrativas, estados de ânimo e brincadeiras colocadas em cena durante 55 minutos.
Em apenas quatro dias de apresentação "O Baú" já coleciona ótimas críticas, inclusive do pessoal encarregado da faxina do teatro: vocês deixam tudo organizado, que bom trabalhar assim.

Para provar que somos crianças grandes e tão presos à tecnologia quanto as crianças que retratamos, após o espetáculo protagonizamos uma cena e tanto no café do teatro. Foto para cá e foto para lá, Laerte resolve enviar por bluetooh um dos registros para o celular de Giovanna, mas a foto não chega nunca, ao que vem alguém lá da outra mesa: são vocês em meu celular! O homem que havia aceitado a foto acreditando ser de seu irmão (também Laerte!) veio logo desfazer o engano.
Ver e fazer "O Baú" é propôr um divertimento mais subjetivo, inventivo e saudável para crianças e crianças que viraram adultos.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O espetáculo e suas meritocracias - 1/3

A bomba atômica fragmentou os corpos de Nagasaki e o pensamento de Fukuyama.

Para o fim da história, os processos históricos acabaram, mas nesta sociedade do espetáculo tudo é considerado momento histórico a ser eternizado pela imagem, inclusive os momentos históricos. Teria se transformado o presente perpétuo de Guy Debord numa constante oferta de momentos históricos instantâneos, audiovisualizados, publicizados, twittados? Será a a pós-modernidade um supermercado de pseudoacontecimentos pré-prontos, para serem aquecidos em 5 minutos por macro e micro ondas eletromagnéticas? Serão as geleiras da Patagônia, as torres de Manhattan e as pirâmides do Cairo margem de erro do pensamento pós-moderno?             

 A musa de qualquer capitalista ou burocrata é a massa. Na sociedade capitalista em sua fase atual, a massa de 7 mil  megapixels  traz no DNA o sistema, mas a massificação em escala mundial criou um tipo standard de indivíduo, o indivíduo-show, que como toda criatura pode, está longe disso mas pode, rebelar-se contra seu criador.

individuo-show tenta fugir desesperadamente da condição de massa a que é relegado cotidianamente, otimiza seu potencial físico, psíquico, interpessoal/virtual tornando-se apto para o mercado de consumo e eficiente para o mercado de trabalho, isentando responsabilidades sociais do Estado sobre ele ao mesmo tempo que aumentam as responsabilidades policiais do Estado sobre ele -pessoas podem perder a guarda de filhos obesos acusados de negligência, mesmo estes sendo expostos sistematicamente ao arsenal propagandístico de exaltação da gordura sintética.

Esse SHOW MAN é instrumentalizado pelo avanço cientifico inaugurado pelo FAT MAN, dispositivos técnicos e tecnológicos que, em certo grau, suprimem a divisão gearcional a que foi submetido no campo psicológico - ele deve ser eterno enquanto compre. Avanço que, diferente da história de Fukuyama, não terá fim e deveria estar a serviço de um sistema justo no qual a autonomia do ser humano fosse um acréscimo à toda a sociedade e garantia de seu bem estar - transgenia poderia significar um avanço humanitário se não fosse propriedade intelectual privatizada usada para entupir o mundo de soja.

Eu como saudáveis alimentos orgânicos (não obstruo as artérias nem os corredores do SUS), faço exercícios regulares (numa academia que me queima as calorias e um bom dinheiro também), leio revistas atualizantes sobre psicologia, nutrição, neurociências (ainda não posso pagar um personal psico, um personal diet, um personal nerd), mal consigo ler um livro inteiro devido à hiperatividade, e o mais importante, os momentos de ócio, improdutivos, inoperantes, são uma culpa digna de qualquer ensaio nietzscheniano. Para completar, deveria requisitar crédito para comprar um imóvel...
Eu sou a comunista pós-moderna dos sonhos de qualquer capitalista pós-moderno.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Por Una Cabeza


Dividindo a sombra da árvore, Ariana e eu ríamos do jornalismo pós-moderno, no qual jornalistas - majoritariamente os televisivos - não mais observam o fato, analisam, criticam, comunicam, eles são o próprio fato. De dietas heróicas até desafios abissais no último dos penhascos, todo experimento é válido no desespero de prender a atenção de um público cada vez mais multifacetado e internauta.

Eis que, por ironia do destino, nós, que iríamos registrar com olhar interessado a apresentação de tango em motivo da revitalização do Brique da Redenção, faríamos parte do evento! Mas aí é diferente, nossa curta mas constante trajetória na recém batizada, porém remota Oficina Comunitária de Tango Ocho Adelante dirigida pelo professor Daniel Carlos, só poderia enriquecer qualquer narrativa, torná-la de fato orgânica, uma perspectiva única que também tem seus contras, pois perdemos o absoluto. Vou tentar ser uma pequena parte (apesar dos 1,80cm) no qual está contido o DNA do todo - pretensiosa...

Como não poderia ser diferente cheguei ao Monumento Expedicionário voando as tranças, lá havia sido montado palco para um dia de apresentações pela revitalização do Brique e os dez minutos de atraso em dia de apresentação pesam como horas - todo atrasado sonha na véspera do grande dia que vai se atrasar e, no dia, se atrasa. E como minha cara de desespero deveria estar na proporção do meu atraso, mal cheguei ao local e já havia uma moça do público com cara de seta me indicando a localização dos tangueros. Descobri que havia chegado tarde para o horário marcado mas cedo para horário em que o pessoal começa a chegar...no Brasil o horário marcado tem "licença poética", o tango seria de BA (Buenos Aires) e a pontualidade da BA (Bahia).
Todas as mulheres havíamos feito altas combinações, chegamos à conclusão de que a roupa seria social e preta, fizemos quase um pacto de sangue...Estava uma mais vermelha que a outra, sobre o social podemos dizer que é um termo muito genérico. Todas ajeitando flor no cabelo, falando da largura do palco, da largura do vestido, da largura do vazio do universo, tangueras, pecaminosas e os homens ali, tangueros, impecáveis.

Antes da apresentação, um pequeno ensaio no chão batido, lá se foi meu lustre de Nugget, a poeira da Redenção acostumada aos capoeiristas, levantou perante un ocho adelante, una mordidita, una cadencia, un ganchito. Do palco, nossa prof. esplendorosa chamava, era hora de formar parejas...minha conterrânea rioplatense no grupo vai entender: un lío, em baiano: um auê. Era homem com duas mulheres, parceiro que chegaria mas não chegava, de repente, brotaram de uma só vez todos os homens que faltavam e, direto da Montevideo do início do século 20, irrompe o som de La Cumparsita, hino do tango, composição do uruguaio Gerardo Matos Rodriguez, ao qual abriram a apresentação Eduardo e Cintia com seu tango bem feitinho, simples e sincero como a gente rioplatense.

Depois da Cumparsita lá fomos nós, cinco parejas no melhor estilo arrabal - lotando o espaço com mais alegria que coreografia, mas uma alegria ensaiadinha. Depois, mais cinco. Ao sol, o público, uma brisa setembrina amenizava, o início de tarde de domingo estava para o tango quase antídoto, quase alegre. Mas a tarde não passaria impune, Mirian e Dorgel em coreografias ousadas imprimiriam o tom melancólico que faltava ao domingo, dançaram mais uma obra prima dos que nasceram ao oriente do rio Uruguay, a milonga Violín de Becho del maestro Alfredo Zitarrosa.

Voltamos ao palco depois de mais uma troca de parejas - leia-se troca de parejas as mulheres fazendo dos homens cabos de guerra cada uma querendo dançar mais que a outra pois àquela altura já éramos maioria como sempre. Receptivo e simpático o público, que já havia entoado aplausos no meio de nossa primeira apresentação, foi mais uma vez enfático e generoso em nossa terceira passagem pelo palco. Uma milonga bem bailada pelo argentino Lepera e sua parceira fechou a sequência de apresentações individuais.
Para finalizar, e desta vez pude observar absolutamente tudo desde o público, se deu a mais bonita das cenas que nosso parque e nossa feira merecem, ali, onde há menos de uma semana marcharam passos rígidos em honrarias militares que tanto envergonham a história remota e recente do Brasil, Uruguay e Argentina, tanguearam no palco e entre o público dezenas de parejas ao som de Por una Cabeza, música de Gardel outro uruguaio, com letra de seu parceiro o brasileiro Alfredo Le Pera , uma honraria ao maior dos feitos, a integração de nossas culturas.

Conosco dançaram Anira que nos brindou com sua elegância junto ao colombiano e ótimo tanguero Pedro, depois do tango, seguiu a perfeita salsa cubana de Arnel Hechavarria e sua parceira Aline.
Parabéns a Daniel, nosso professor argentino do qual claramente aproveitamos a ausência para tocar tantos tangos uruguaios...e a toda a turma da Oficina de Tango, unida, alto astral e solícita como sempre! *2011

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As Velhas de Cezar




  
ESSE NEGÓCIO DÁ CRÔNICA - OFICINA DE LITERATURA
Coordenação: Cezar Dias Carga horária: 12h Data: de 06 de nov. a 11 de dez. (terças-feiras) Horário: 19h às 21:00 h Promoção: SIMPE-RS Endereço: R. Fernando Machado, 226 – Centro, POA. 

A mensagem me chegou instantânea, e mais do que instantânea foi a resolução por meu sistema nervoso emitida: Crônica, eu? Nem a pau. Não disponho de paciência para tantas linhas, o pior é ter que sintetizar depois. Não tenho chrónospara crônicas. Nem leio crônica quase, para ser franca li umas dez na vida. Pra que uma comunista que só escreve panfletos panfletários precisa ser cronista? Para que uma babá de adolescentes que não lêem precisa ser cronista? Pra que diabo alguém que não quer ser cronista precisa ser cronista??? Eram muitas questões a ser respondidas, comecei a cogitar a tal oficina.   
A alguns dias do início das aulas, encontro com Cezar na feira do livro:

Tenho umas seis velhas querendo fazer a oficina.

Digamos que as seis velhas não representaram para mim um estímulo muito grande. É difícil encontrar velhas radicalizadas, geralmente elas escrevem sobre paisagens, graças divinas, maternidade, áureos tempos, Deus ajuda quem cedo madruga ...  Mas lá fomos nós, eu com minhas orelhas e suas respectivas pulgas para aprender com Cezar e suas respectivas velhas.

Terça-feira, 06 novembro de 2007, 19h, Simpe.     
Olha, não sei o que ele fez com as “umas seis velhas”, mas a oficina contava com oficinandos bem fresquinhos e todos do gênero oposto. Logo percebi: tenho um harém ao contrário, de mulher ali só eu, a babá.

Gonzalo é o homem das bebidas que vão de café a chimarrão passando por águas minerais desprovidas de bolinhas. Além de bilingue, Gonzalo tem dotes filosóficos e digamos que sem ele o harém não abre-se sésamo.

O vegetariano (no ético), ariano (nos astros), disse que procurou o harém para alienar-se da loucura do banco. Aonde veio parar. É como o alcoólatra que, tentando livrar-se do vício vai fazer terapia no alambique.

Oscar reclama não conseguir nem comer um kibe até o final, mas nos seduz com sensibilidades das mais variadas, ainda mescla um pouco o bem com o mal e ao evocar Paulo Sant´Anna tem o poder de provocar  iras celestiais.


Dani é representante da ala administrativa do palácio e dispondo de geniosa racionalidade nos ludibria com seus tus que são a tis com abissal capacidade.   

Salvador gosta de nos fazer desvendar enigmas, professa os mistérios contidos nas lâmpadas, e nos armários.

Cezar há mil e uma noites sonha em ser oriental (da República do Uruguay) e já anda delirando, tendo miragens, de pernas pro ar feito o profeta Galeano. Jura por Alah ter visto um tubarão com a faca nas costas depois de duelo sangrento com o peixe-espada. Pobre alma transtornada!

O cabeludo também não se parecia nem um pouco com uma velha, pelo contrário, dispunha da saúde de um camelo. Mas não voltou nunca mais, desertou, esse devia ser monogamista (ou monocronista).  

Como o harém funciona só um dos sete dias da semana, todos são uns amores, mas aposto que, tirando os sete véus, não passam de sentimentalistas de araque. Alguns são meio teimosos e todos sofrem de distúrbios crônicos.     *2007

domingo, 2 de outubro de 2011

Os imprescindíveis



Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis




Para escrever o poema Os que lutam, Bertolt Brecht pôde inspirar-se em nomes que iam de Rosa Luxemburgo a Lenin, indivíduos cujos fenômenos sociais dos quais emergiram e foram construtores, transformaram ou abalaram irreversivelmente o mundo. Para escrever tal poema B.B pôde ter se inspirado em lutadores sociais anônimos ou inclusive nele mesmo sem nenhum resquício de arrogância, apenas fazendo jus à sua própria trajetória como dramaturgo militante e exilado da Alemanha nazista.
Para acabar com o poema Os que lutam, Galvão Bueno se inspirou em outro fenômeno, Ronaldo, quando o recitou durante a transmissão do jogo de "fim de carreira" do jogador.
O dia de ontem foi de saídas, e saíram os que não tinham saída. Uma mídia preparou a despedida do número 1 da Dilma, a outra do número 1 da Brahma. 
De comum entre os 2? 
Ronaldo tinha como prática jogar futebol, atividade tão legítima quanto qualquer outra, até que sua imagem como jogador de futebol  tornou-se um patrimônio muito mais rentável do que a prática futebolística a ponto de transformar-se em antítese de um esportista, o logo da cerveja. Ronaldo - o centroavante - não separou o joio da cevada e a barriga de cerveja não tardou em crescer. A mídia tinha então à disposição uma imagem informe a qual podia moldar  às jogadas publicitárias. Bertolt sabia: Um homem é um homem...
Palocci tinha como prática fazer política, atividade tão legítima quanto a de médico sanitarista, até que sua imagem como gestor público tornou-se um patrimônio muito mais rentável do que a simples prática política a ponto de transformar-se em antítese de um homem público, do bolo: a cereja. Palocci - o centroesquerda - não separou o público do privado e seu projeto não tardou em crescer. A mídia tinha então à disposição uma imagem formidável de como a socialdemocracia podia moldar-se às jogadas da classe dominante. Palocci sabia: O homem é o lobby do homem...
Os dois profissionais valem muito no mercado, um é vendido no estádio, o outro vende o Estado. Eis os fenômenos.
Um é o que o capital precisa. O outro é o que o capitalismo precisa.
E os precisa desiguais e combinados seja por um dia, uma vida ou um ano, pois eles são
os imprescindíveis.  *Junho 2011