domingo, 1 de janeiro de 2012

Razón de Vivir 2/2


* A Rosmarie de presente, a Marty de regalo.

A última noite do ano em Porto Alegre foi como qualquer dia do ano em Montevideo, de frio.
Só há uma coisa que abomino tanto quanto a injustiça, o frio. Uma, obra humana, o outro, obra da natura. Assim era, era quando Vivaldi compôs As Quatro Estações, agora as quatro estações ou a falta delas também podem ser obras humanas, ou desumanas. Estou convencida que, enquanto o planeta superaquece, a humanidade resfria com o derretimento das geleiras, pelo menos a humanidade do sul da América do Sul, que experimentou frio atípico no ano que passou.

A única tradição que celebro religiosamente todo natal e ano novo é a falta de luz na cidade, ainda bem que a cidade luz é Gramado, Porto Alegre nunca poderia sediar tal evento. A queda de luz veio com o cair da noite de 31 de dezembro, consequência do consumo desmedido de energia que acompanha o consumismo desmedido destas datas, cuja comemoração contradiz o cristianismo em todo seu dogma e cartilha. Os sete pecados capitais são alforriados para satisfazer os pecados do capital: o lucro, seu acúmulo. Há quem acredite muito, há quem acredite pouco, há quem não acredite, mas todos terão crédito. Ao meio dia do 24 de dezembro, apenas uma das empresas que dominam o mercado de cartões de crédito e débito no país registrou 655 operações em um segundo, a estimativa era que no dia seguinte passassem de 800. Nosso afresco atual - se a pós modernidade nos permitisse algum gênio à altura de Da Vinci - seria a pintura de um enorme presépio bem iluminado com os reis magos pagando os presentes do menino no Cielo.

Escrevia no escuro e o único foco de luz era a brasa do charuto aceso até Hanna aparecer iluminando com seu tablet - presente de natal claro - havia pedido para ela cantar Maná depois que meu Silvio Rodriguez parou junto com o apagão. A cena da noite da "virada" em casa era algo como se o mar que separa Cuba dos EUA secasse e seus territórios se juntassem: uma com seu habano na janela da área de serviço escrevendo à mão no escuro, a outra ao lado segurando o tablet que toca música e funciona até quando a gente não quer que funcione. Agora brilhavam além da brasa, o enorme par de olhos verdes dela e os azuis do siamês. Energia elétrica de volta, voltei para o quarto e para Silvio.

Para estarmos completamente agasalhados e ainda assim passar frio no novembro montevideano só poderíamos ser dois brasileiros, uma uruguaia abrasileirada e um cubano (por mais caliente que o cubano fosse). Cônscia de minha hipotermia e do viento sur de Montevideo havia ido para o show, que seria num pequeno estádio, prevenida de chale de lã e tudo. Lud e Fonsequinha nem tanto. Havíamos nos deparado com o estádio depois de passar por um "mini bosque" dentro de um parque onde se localizava o Charrúa. O cheirinho das tortas fritas, uma massa simples com forma de pão árabe frita em gordura animal, desafia meu vegetarianismo adulto trazendo uma infância em que aquelas tortas eram sinônimo de festa, futebol, música e trunfo - não havia satisfação maior para uma criança que pedir dinheiro para comprar torta frita e voltar com aquele troféu que, carregado por duas mãozinhas, sob a admiração de dois olhinhos, mais parece uma lua cheia.

Nos abancamos a uma distância em que podíamos ver Silvio além de escutá-lo, havia um mês as entradas tinham sido compradas pelos amigos Sebastián Jantos e Rossanna Attias numa verdadeira transação econômica Porto Alegre - Montevideo que contou com a mãe da Claudia e a mãe da Ro, ou seja, havia mais pessoas envolvidas na árdua compra dos ingressos que as que fomos ao concierto. Durante a apresentação Silvio reclamou do frio, Lud, Fonseca e eu entendemos perfeitamente, os outros quinze mil, todos uruguaios, caíram no riso e retrucaram: - Esto no es frio!

Bom comunista que é, dedicou uma música ao público das arquibancadas que "tinham menos e por isso compraram as entradas mais baratas", eu havia acabado de pagar o valor do ingresso a Fonseca que me havia feito empréstimo na data da compra, investi meu salário de vendedora para estar lá, em outro país a meio caminho do palco, talvez boa parte dos que estavam nos lugares menos privilegiados tenha decidido ir de última hora. Mas meu orgulho pequeno-burguês ferido não poderia sobrepôr-se àquele senso de justiça e humanismo, Silvio manda, aplaudi a declaração com entusiasmo. Vinte minutos depois do início da apresentação, grupos expressivos de pessoas ainda chegavam, sinal de que era um evento popular, no qual o chegar de ônibus, o pegar uma cerveja antes de sentar, o chegar atrasado mesmo, eram parte do espetáculo. As pessoas foram ao estádio ver Silvio Rodrigues como se fossem ver futebol, Brecht diria que é o músico perfeito, o músico das massas, o músico do materialismo histórico.

Os pedidos urrados da plateia eram os mais variados, se ouvia: - Silvio, cantá Unicornio! - Silvio, cantá Playa Girón! - Silvio, cantá El breve espacio!
Até que uma gritou: - Silvio, cantá lo que quieras!

Eu pedi Canción urgente para Nicarágua, tenho impressão que ele chegou a parar por uma fração de segundos para certificar-se que estava mesmo ouvindo aquilo, é, havia um dinossauro no meio do público, e era eu.

Minha expectativa para aquele concierto era descomunal, até pouco tempo, o Uruguay e Silvio me eram memória preciosa de um mundo cujo passado foi precipitado artificialmente, não esperava tê-los novamente, ali, juntos. O Uruguay em que nasci já havia rasgado seu papel de Suíça latinoamericana, repleto de velhos carros e esvaziado de uma parcela importante de seu povo que havia deixado o país exilada política ou economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo sem superação: a barbárie. A Cuba em que Silvio vivia, já havia rasgado seu papel de cassino latinoamericano, repleta de velhos carros e esvaziada de uma parcela importante de sua burguesia que havia deixado o país exilada política e economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo superado: o socialismo.

Agora eu esperava que o Uruguay cantasse do início ao fim junto com Silvio, mas boa parte do tempo só o escutou. Aquele não cantar junto com o artista destoava das tortas fritas iniciais, dos atrasos finais, do lugar onde foi realizado o show, e dos gritinhos emocionados entre uma música e outra, só combinava mesmo com o nome pelo qual é conhecido um show no Uruguay - concierto-, na hora do vamos ver, parecia um concerto clássico, no Brasil as pessoas cantariam junto, eu não ousava cantar sozinha com a voz desafinada que dói, com o timbre baixo de Silvio e o silêncio fúnebre durante algumas músicas seria alvo de uma torta frita se acompanhasse cantando. Não foi todo o tempo assim claro, alguns hinos rodrigueanos tiveram direito a coro massivo, alguns.

A certa altura do concierto Silvio foi homenageado como visitante Ilustre de Montevideo, já perto do final o visitante ilustre pediu ao público que sorrisse para ele filmar e postar em seu blog, "sinó no me lo creen"...

O concierto contou com as flautas mágicas de uma moça que à primeira vista, por sua postura, vestimenta e cabelos, parecia uma freira e ao tocar seu clarinete e flautas mais parecia uma ninfa. Silvio a acompanhava enfeitiçado, o público estarrecido - o que talvez explique os silêncios fúnebres, talvez fossem silêncios celestiais. A nostalgia e a doçura das melodias do músico harmonizavam com o sopro dos instrumentos dela de um modo que parecia encantado por suas próprias composições, algumas concebidas e executadas há mais tempo que o tempo de vida da clarinetista. Eu não sabia mas depois descobri, Silvio estava encantado pela instrumentista e pela esposa Niurka González.

Quando o amor ali já havia tomado o poder, quando já havia se estabelecido como estética oficial, adentra o palco Amaury, outro cubano, amigo de Silvio, músico que não seria bem daqueles que caem no gosto dos que lotaram o Charrúa. Então Amaury numa simplicidade e alegría comoventes contou porque havia atravessado a América Latina para cantar aos uruguaios.

A música que seguiria, "La uruguaya", foi composta por ele para Alejandra, uma uruguaia chegada em Cuba com seus pais depois do último golpe civil-militar e do terrorismo de Estado instaurados no Uruguay. Alejandra chegou à ilha grávida e por lá não ficou muito tempo, mas o tempo suficiente para enamorar Amaury, o companheiro cubano se mostrou companheiro de vida e ela dedicou o nome de seu filho àquele homem apaixonado e generoso. Amaury lhe dedicou a música e prometeu cantá-la para ela, no país dela.

Amaury cumpriu a promessa quase quarenta anos mais tarde, Alejandra estava na plateia. Por acaso, eu também.