Antes de ver Batman com Hanna, resolvi ressurgir na casa de Carmen que é a própria mulher gato (tem gatos, esculturas de gatos, miniaturas de gatos e um cachorro, só para apanhar dos gatos). A ideia era concretizar um mate adiado há mais de ano e se a gata da Paulinha não tivesse sequestrado a cuia da mãe, Carmen e eu teríamos tomado umas duas chaleiras, a gata da Clarinha fugiu para o quarto assim que anteviu configurar-se na sala o princípio de uma narração ininterrupta, emocionada, empática e multifacetada: duas mulheres que há tempo não conversavam. Lá pelas tantas catamos das trevas uma cuia e finalmente mateamos antes de eu voar para o cinema e passar as duas horas e quarenta e cinco de filme querendo mijar (!!!).
Da trilogia de Christopher Nolan não lembro de ter visto o primeiro filme (Batman Begins) mas me cativou o segundo (Batman: O Cavaleiro das Trevas) que me levou a ver o terceiro (Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge), para ser uma mercadoria da Warner Bros estes últimos abordam teses sobre ética até relevantes que não ocupam apenas dois hipócritas e rasteiros minutos da película como em quase todas as mercadorias de entretenimento.
No segundo filme é apresentada, em traços grossos, a seguinte situação ética: um promotor público se destaca no combate ao crime organizado, assume a identidade de Batman como tática para proteger o herói e a si mesmo e se consolida como uma referência de justiça para a população, em seguida, vitimizado pelo vilão Coringa se corrompe transformando-se num criminoso também, para que o povo não perca a esperança na justiça e na ética encarnadas no herói, o verdadeiro Batman assume a autoria dos crimes e isenta a imagem do promotor que morre, mas cujo caráter permanece publicamente ileso. A tese central: herói é aquele que faz o que é necessário.
O terceiro ainda está fresco em minha cabeça. Como todo produto lançado com o objetivo de obter lucro e ao mesmo tempo reforçar a ideologia que garante uma sociedade na qual seja possível alguém obter lucro, quase todos os personagens carregam uma simbologia direcionada, no cerne da trama o mentor da vilania por trás do vilão secundário é uma mulher, o homem-morcego aparece num princípio decadente e desprovido de cartilagens devido à sua alta produtividade no passado, mas depois de dois abdominais se recupera e volta à ativa, uma ladra que tenta, de maneira criminosa, conseguir uma "Ficha Limpa" - a arte sempre antecipa a vida e a política - mas se regenera após momentos de contradições, um jovem detetive que questiona atuação de policiais por estes só acatarem ordens superiores sem refletir sobre a situação concreta, um Alfred que além de falar de igual para igual com seu patrão herda boa parte de sua fortuna.
Dentre as situações centrais, um vilão grotesco que no momento de caos provocado por ele mesmo se apresenta como detentor dos destinos do povo e com discursos nazi- fascistas de apologia popular contra as classes dominantes declara estado de lei marcial e instaura em Ghotam tribunais com processos de julgamento e punição similares aos universalizados pelos episódios seguidos às revoluções francesa e russa nos quais até os colaboradores são condenados e executados. Em instantes épicos o povo da cidade vai às ruas contra a tirania e, no final, o homem-morcego salva sua cidade, seu povo e a si mesmo (???) depois de explodir no ar com uma bomba nuclear. A bomba, antes de bomba era um reator que caso tivesse o núcleo preservado seria a investida ecológica da cidade...
Talvez esse seja o lado mais lúdico do filme, a alternativa ecológica. Mais lúdico até do que um "homem-morcego". Cogitar uma saída ecológica sem cogitar a saída do sistema capitalista é uma xarada debochada digna do Coringa, personagens que não aparecem no terceiro roteiro.
Desde o super-atleta que apresenta alto desempenho até a mulher no comando, a jogada publicitária é implícita em busca de supervalorização de um determinado tipo social e/ou ampliação de um mercado consumidor emergente que garante a expansão do lucro na sociedade do espetáculo. Seja o mordomo do filme ou as empreguetes da novela, a farsa é a de que o povo está no poder, que o povo pode... por conciliação.
Já o vilão grotesco que no momento de caos se apresenta, este não é nada lúdico. Na Grécia em meio ao caos econômico provocado pela especulação do capital internacionalizado e suas ações sem lastro e, pelo qual seus gestores econômicos tentam culpabilizar o Estado grego acusando como um dos motivos a concessão de benefícios a seus trabalhadores, o partido neonazista local elegeu uma bancada generosa com representantes medonhos. Brutamontes exigiram da imprensa a recepção em pé de seu líder, cena cinematográfica, pouco tempo depois um dos parlamentares desferiu bofetadas a parlamentares opositoras em um programa de televisão. O nome deste filme? 2012 e não 1984.
A reflexão sobre moral e ética é abordada de maneira progressista pelos socialistas há muito tempo, em sua arte, em sua teoria política. E com igual capacidade com que foi desenvolvida a moral revolucionária que rompe com armadilhas retrógradas e mitos que dão sustentação ao moralismo burguês, foi utilizada de maneira hipócrita, desleal e criminosa por setores ditos socialistas que experenciaram o poder político em diferentes regimes e lugares.
O mito que torna o roteiro de Batman inverossímil não são as proezas fantásticas que a arte é capaz de criar, a fantasia tem uma verdade para cada mente. Batman é o garoto propaganda perfeito para a indústria do consumo, não dispõe de superpoderes, dispõe de dinheiro, tecnologia, uma boa performance intelectual e física e, claro, vive motorizado, mas a grande mentira na estória do homem morcego é que a cidade de Gotham é alvo para o crime organizado. Gotham City é uma cidade organizada para o crime. Gotham tem policiais corruptos, políticos corruptos, empresários corruptos e quando é atacada por vilões apenas um homem tem o dinheiro, a inteligência, a tecnologia para protegê-la.
Ao ouvir o comentário: “Infeliz do povo que não tem heróis" o dramaturgo alemão Bertolt Brecht teria respondido: "Infeliz do povo que precisa de heróis".
Assim como Brecht, qualquer comunista sabe que herói é aquele que faz o que é necessário mesmo que sua imagem fique suja aos olhos do senso comum. Mas para qualquer comunista que se preze o herói faz o que é necessário para o bem comum. Em cidades como Gotham ex-comunistas chegam ao planalto de batmóvel e sobem a rampa com o guarda-chuva do Pinguim.
Nossos heróis rebaixaram seu programa até que ficasse aceitável para os empresários, a polícia e os vilões de Gotham, mas para garantir a estabilidade da cidade nosso homem-morcego sugou os recursos públicos dela. Em cidades como Gotham o dinheiro comum é necessário pois há um vilão para cada gabinete organizado.
Infeliz do povo que precisa de heróis...
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
domingo, 12 de fevereiro de 2012
Makeup para a cup
Se os domingos tem sido um tanto rotineiros apesar de prazerosos (leituras sobre a guerra civil espanhola ainda e por muito tempo) a previsibilidade acaba às vésperas das segunda-feiras. Os acontecimentos imprevisíveis de um derradeiro domingo de fevereiro na Cidade Baixa de Porto Alegre, na atual conjuntura, não são nenhum fevereiro russo, em conjuntura revolucionária, mas me rendem uma dez crônicas para abalar o blog.
Como qualquer processo criativo, no qual se está intensamente envolvida, a construção da personagem Tereza Carrar extrapola as horas de ensaio e me invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, exige predisposição para detalhes mundanos e humanos que contribuam em sua formação. O trabalho automatizado e mecânico, também invade outros períodos do dia e da vida, se alastra para âmbitos que não lhe pertencem, mas esse neurotiza as pessoas em tempos modernos. Quem cria enlouquece com lucidez, com relativa lucidez - hoje despertei espreguiçando com as mãos floreando em movimentos flamencos (!). A pausa no trabalho corpóreo aos domingos não obedece nenhum resquício religioso que possa restar-me, mas os dos companheiros peruanos que organizam almoços dominicais no Comitê Latinoamericano religiosamente. Passo o dia a ler sobre o período histórico e mais previsivel que o domingo, só o papel contrarrevolucionário que a socialdemocracia cumpre em diferentes períodos históricos.
Entre uma página e outra, um mate e outro, um afazer doméstico e outro, um adolescente e outro, um gato e outro, um lanchinho e muitos outros, foram várias passagens pela janela até que decidi, o final da tarde seria para um charuto na galeria - os textos iriam junto claro. Com aquele frio no leste europeu é quase um crime não aproveitar as tardinhas de verão, sabe-se lá que nos espera...
Na ida para a galeria encontrei Débora, que mais tarde me acompanhou e passamos rapidamente da ditadura militar espanhola para a ditadura civil-militar brasileira ao evocarmos o querido e legendário Tejera de Ré, o Minhoca, companheiro destacado na resistência que, recentemente, deixou um número sem fim de amig@s e sinceras homenagens.
Depois de levar Deb em casa voltei reparando na quantidade enorme de "papa entulhos" que havia emergido no bairro devido à notificação autoritária que a Prefeitura enviou aos moradores intimando a arrumar urgentemente as calçadas - makeup para a cup. Eu havia passado um mes inteiro catando um daqueles para livrar-me dos ferros velhos que, há tempos estorvavam, na casa e quando achei fui espirituosamente perguntar à vizinha (distante, porém, vizinha) se poderia levar umas coisinhas. À pergunta seguiu-se uma ladainha infindável sobre como todo mundo jogava qualquer coisa no tal "papa entulho" dela ao invés de jogar no container (socorro!!!aquilo é lugar de lixo orgânico), que logo excederia em peso, que certamente cobrariam multa e mais uma porção de coisas - deve ter achado que meus ouvidos eram container também. Passada aquela mal sucedida empreitada, o atual contingente de "papa entulhos" era o paraíso na terra, ou melhor no asfalto, em instantes voltaria com boa parte da sucata.
Quase meia-noite, uma parada na cozinha só para um macarrão, outra parada na janela só para não perder o costume, toca o telefone. O amigo uruguaio conta que havia passado na praça para a qual nesse então eu olhava com ares de assassina a vestir as luvas de raspa (herança da carpintaria de formas) decidida a carregar os ferros. Elbio é a educação personificada, devo ser a única pessoa para a qual ele se atreve a ligar num domingo tarde da noite, talvez por ser a única com séria probabilidade a orquestrar uma tarefa no "papa entulho" num domingo tarde da noite. Terminada a conversa, me fui.
- Rachel, vou levar o ferro velho, já volto.
- Quer ajuda?
- Quero, mas só tenho um par de luvas, tira o vestido, troca de roupa.
Digamos que ela captou bem o espírito da coisa e se vestiu bem propícia à atividade, colocou a roupa mais rasgada que tinha e lá fomos nós carregadas. Apesar do peso pude dar boas risadas quando passamos por uma patotinha de guris que bem que teriam se fresqueado caso ela ainda estivesse no vestido, naquelas circunstâncias só vimos as caras de espanto - a visão era de dois seres aparentemente do sexo feminino surgidos das trevas cobertas por materiais dos mais variados.
Depois de depositarmos a sucata "pé por pé" para evitar o flagrante no papa entulho alheio, Rachel seguiu pelo lado da rua mais obscuro e inóspito para voltar para casa, meu instinto para o perigo só funciona com baratas mas meu instinto antisséptico é bem ativo e sabendo que aquela parte da rua cheia de moitinhas é um verdadeiro banheiro a céu aberto saltei:
- Vamos do outro lado.
Diferente de nós, um rapaz optou por tomar o lado escuro da rua, mas depois de uns cem metros de conversa quando chegávamos à esquina, percebi que o caminhar dele afunilava e, finalmente, atravessava em nossa direção, alertei Rachel e prontamente revertemos o caminho retornando para o trecho, movimentado e iluminado, do qual vínhamos. Não deu tempo, o homem nos alcançou, tomei a frente e disse que não tinha nada, ele insistiu para que desse o celular que estava no bolso da bermuda (meus amigos ligam domingo a altas horas, ora), eu repeti que nada tinha, ele fez um gesto de possuir algum objeto na parte inferior do abdome (acho que se havia algum objeto ali era meramente sexual), lhe agarrei as mãos (não desperdiçaria a oportunidade com minhas luvas de raspa fatais), mandei Rachel correr (ela não correu, andou um pouquinho o que aumentou minha tensão) e começei a gritar alto o suficiente ao ponto dos moradores dos arredores mesmo assim conseguirem fazer vista grossa, ele ficou sem reação e se foi.
Novamente no extremo iluminado da rua perguntei ao garçom do bar se não havia escutado os gritos, disse nada ter ouvido - a visão do rapaz deve ser mais aguçada que a audição a julgar que, quando passo de saia, está sempre atento - me perguntou como era o cara, lhe dei a descrição e ao mesmo tempo me surgiu que era parecido com Jonatan, um rapaz em situação de rua que conheço há anos, uma vez um vulto emergiu de uma praça em frente à qual eu passava às tres da manhã. Naquela ocasião pensei:... estou ferrada, a essa hora, essa praça... e aquele vulto saindo dela. O vulto em questão era Jonatan e disse: - Oi! Jonatan era irmão de Pablo, o qual conheci enquanto vendia docinhos na rua há uns dez anos e o qual, com seus dez anos talvez, me pedia os negrinhos que não podia dar mas dava. Foi com Luara, enquanto vendíamos caipirinha e leite de onça na rua há uns oito anos, que juntamos as histórias, não lembro como os associamos e qual deles ela conheceu mas de fato se tratava de dois irmãos que moravam na rua separados, Pablo cada dia mais corrompido e drogado, Jonatan educado e sempre atrás de "bicos".
O garçom sugeriu comunicar a Brigada Militar, pensei em ligar e denunciar uma manifestação de professores ou contra o aumento das passagens de ônibus, o que garantiria a agilidade do serviço, mas preferi voltar para casa. Assim que passou uma família inteira "pegamos carona" e caminhamos juntos, eu não havia visto o sujeito sumir no horizonte, desconfiei que estivesse por ali à espreita. Caminhando e contando e seguindo o povão, estava a narrar o acontecido quando atravessa em nossa direção o mesmissimo homem que tentara roubar-me, vi que era o mesmo pela roupa, meio perplexo me viu no meio das pessoas, completamente perplexa o pude ver com demora, os dois nos cumprimentamos, ele cínico, eu irônica. O vulto em questão era Jonatan.
Se não me reconheceu, não sei, pode haver reconhecido quando já era tarde para desistir da abordagem, pode haver reconhecido e mesmo assim investido na ação totalmente fissurado. Como não o reconheci, não sei, talvez na tensão me fique tudo nubiado, posso haver reconhecido e não haver acreditado.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Pajero Sexy, Nude Full
Beirava a meia-noite quando decidi encerrar meu domingo que, havia sido inteiro dedicado ao estudo da guerra civil espanhola, depois de adentrar em pormenores sobre a Alsácia-Lorena - é sabido que a Alsácia-Lorena não fica na España mas é como minha Amiga Lorena, mesmo sem querer, consegue gerar problemas de dimensões internacionais.
Não faz muito convidei Lorena para uma saída noturna, a noite seria uma criança, pelo menos até a meia-noite que é o horário em que começo a achar a noite uma criança chata e repetitiva e Lorena volta para casa cuidar suas crianças que de metáfóricas não têm nada. Estava tudo correndo às mil maravilhas, fora o fato dela estar escorrendo às mil maravilhas em função do calor insuportável que assola a cidade, eu já bebia bem feliz mas Lorena mal havia encostado no copo quando me alertou sobre um embrionário mal-estar no exato momento em que começou a tocar um tango, naquele instante poderia ser o Freud a trovar sobre o mal-estar na civilização, peguei Lorena jogamos mesa para um lado cadeiras para o outro e tangueamos nomás como si fuera esta noche la última vez.
E provavelmente tenha sido a última vez naquele lugar, porque eu mal havia saído da pose final e Lorena me olha: - Voy a vomitar ahora. Mas uma corridinha até o banheiro não seria impossível, numa angustia digna de um bom tango Lore segurou firme até lá, impossível foi achar o banheiro disponível. Depois de invadir a cozinha e pegar a primeira coisa vomitável que vi pela frente (uma caixa de papelão) veio o estrago e foi um papelão só, quando fomos abordadas naquela inevitável ação, deixei cair a caixa ao que o conteúdo se espalhou pelo chão para acabar de vez com qualquer possibilidade de ocultação e ocasionar fatal constrangimento. Enquanto eu limpava o chão com esfregão Lorena pulava ao meu redor: - Mirá! Mejoré, estoy bien ya! O "melhorei" dela era um melhorei tão pueril quanto o de uma criança resfriada que insiste em tomar banho de mangueira, no instante em que me prestei a parar o frenesi do esfregão e lhe olhei na cara parecia Gasparzinho, o fantasminha camarada, uma coisa transparente falando sem parar.
A Alsácia-Lorena e a Lorena rendem para uma boa historiadora e para uma boa amiga, respectivamente, capítulos copiosos que merecem ser escritos, por enquanto me resumo à crônica do fim de domingo. Depois de adentrar nos pormenores, beirar a meia-noite, refletir sobre a Alsácia e a Lorena, me plantei na frente da televisão para pintar as unhas (pior que ler só no domingo é ler no domingo e achar que leu demais...). Pintar as unhas não tem sido um evento raro depois que inventei de arranhar o chão na partitura de movimentos que criei para a personagem de Bertolt Brecht, Tereza Carrar, cuja história se passa na Andaluzia em 1936, o esmalte ajuda a proteger as unhas, mesmo que o nome da cor "Sexy Nude", a qual comprei sem achar grande coisa e resultou ficar lindíssima nas mãos, não denuncie proteger coisa alguma. Mas futilidade de comunista não dura muito, foi quando terminei a mão esquerda que meu "momento perua" foi interrompido. Já havia escutado uma sirene silenciar muito próximo - sempre que acontece penso que é um péssimo sinal pois significa que houve o óbito - outras se seguiram e igualmente silenciaram tão próximas quanto a primeira. Não pensei duas vezes, meu lado investigativo (descobrir em primeira mão) ou meu lado comunista (descobrir em primeira mão para traduzir aos vizinhos no dia seguinte depois de uma avaliação) superou meu lado paysano (esperar o dia seguinte para perguntar ao jornalista, ao comunista e aumentar em cem o número de mortos).
Se saísse do jeito que estava teria que torcer para as sirenes não serem da polícia e, pela terceira vez, ser detida não por ataque violento à ordem pública mas ao pudor, pesquei uma minissaia no armário e tentei mas não houve jeito, foi-se o esmalte da mão esquerda que ainda estava fresco, era demais querer uma unha bem pintada para poder arranhar o piso, saí noite adentro descabelada, com minha saia de pirigueti e com uma mão feita de "Sexy Nude" e a outra não, caso fosse uma batida policial no inferninho da esquina não voltava para casa tão cedo.
O "acidente" (não considero que os quase diários eventos desastrosos com automóveis nesta rua sejam acidentes, sempre antes de ouvir as batidas ouço a velocidade enlouquecida com que se deslocam) envolveu, além de seis pessoas, uma Pajero Full e um Gol. Desde minha chegada ao local até minha saída constatei o trânsito de, no mínimo, nove veículos de auxílio entre ambulâncias, carros de bombeiros, e viaturas da brigada militar e EPTC, do Gol restaram ferragens e pessoas presas nelas.
A barbárie do trânsito rodoviário e urbano é, em última instância, gestada numa mesma produção em série. Ao volante o indivíduo fútil, massificado, colonizado, explorado, oprimido, desvalorizado que acredita possuir valor apenas dentro de um latão com financiamento a perder de vista, na traseira desse indivíduo irresponsável, uma das indústrias mais poderosas do mundo, pressionando governos a fomentar crédito e isentar dos mais variados impostos sua mercadoria no esforço para evitar redução de lucros, o custo é imediatamente humano (a propaganda ofensiva confere ao fetiche poderes superhumanos e desmedidos que se traduzem em desastres a cada minuto), mediatamente planetário (a agressão ambiental é acelerada pela poluição causada por milhares de veículos em circulação em cada país) e alarmantemente público (segundo maior problema de saúde pública no Brasil com ocupação de 55% dos leitos hospitalares sem contar as doenças respiratórias que matam três crianças por dia em São Paulo). O governo brasileiro em sua política econômica sempre pronta a promover o "aquecimento" da economia que nada mais é que o consumismo exagerado é imediatamente, mediatamente e alarmantemente anti-ético. O único sinal a frear o carro-chefe da America Latina em suas importações automotivas foi a balança comercial, a balança da justiça social definitivamente não é o que mais importa à socialdemocracia brasileira.
A esquina, além de tomada pelos carros públicos e acidentados, contava com um bom número de pessoas curiosas (as quais somos chamadas de populares pelo jornalismo) e, na hora em que parece ter havido mais movimentação e chegou a formar-se um pequeno corre-corre, apareceu o que não poderia faltar: um cachorro. O cachorro era vira-lata, não acompanhava agente de segurança ou socorrista algum, a cidade baixa não é um bairro com número expressivo de vira-latas - o que mais se vê são cachorros domésticos presos às coleiras dos donos - mas asserindo o que é quase tão antigo quanto a própria tragédia o vira-lata emergiu com aquela capacidade dos cachorros de estar sempre em meio ao caos como que para ajudar em alguma coisa.
Assim que vi um jornalista agucei os ouvidos para saber do parecer "formal" do ocorrido visto que não havia vítimas fatais nem gravemente feridas, ao menos aparentemente. Se há algo que sufoca a jornalista que nunca serei, é essa incapacidade para panoramas técnicos ou mesmo essenciais mas que me escapam por sua materialidade incompatível com a abstração que me acompanha, enquanto eu observava bombeiros em ação, vizinhos que nunca havia visto no bairro e, principalmente o cachorro emergindo no caos, algumas pessoas a meu lado faziam uma análise perita sobre o lado do carro batido, a porta atingida, a umidade relativa do ar no exato momento da colisão, aliás, nem sei para que existem técnicos especializados nisso, vox populi, vox dei... Embora chegado por último imaginei que, aquele homem de mente perspicaz para o trato da notícia, com certeza arrasaria todo meu esforço tardio por apreender o que havia de mais concreto e lógico naquele choque, o brigadiano prontamente se dispôs a responder e eu estava a uma distância da qual ouvia perfeitamente:
- Nomes?
- Fulano, Ciclana, Mengano.
- Motivo?
- Provavelmente atravessou o sinal vermelho.
- Estado?
- Regular.
- Obrigada.
Pronto. A devassa ficou para o fotógrafo que por pouco não entrou na ambulância para registrar imagens até do tecido adiposo do socorrido. Me pergunto se é realmente de utilidade pública veicular três nomes que só dizem respeito às suas famílias e uma foto enorme da coisa, mas eu me pergunto tanta coisa... Fato é que aquela Pajero Full passa não só por cima de palha mas de um monte de outras coisas e é capaz de amassar fullpletamente outro carro. Fatídico deve ser sair com ela para qualquer outro país da América Latina, a etimologia para pajero é de domínio popular .
Utilidade pública mesmo é o relato de George Orwell sobre o período em que lutou nas milícias de defesa da república española durante a guerra civil. Apesar de certo preciosismo típico do inglês desconfio que também houvesse um esforço seu na apreensão total e racional dos fatos, mas não se torna forçado na forma - pior coisa que há é o distraído tentando dar uma de exato, um desastre. A ótima recomendação de Mário Maestri antecipou a pilha de leituras cedidas generosa e entusiasmadamente por Enrique Padrós, dois professores e historiadores cuja atuação extrapola as cátedras acadêmicas na produção e democratização de conhecimento.
O relato de Orwell é full. Franco pisou no povo espanhol como se pisa em palha. O capitalismo ficou nude perante o mundo.
domingo, 1 de janeiro de 2012
Razón de Vivir 2/2
* A Rosmarie de presente, a Marty de regalo.
A última noite do ano em Porto Alegre foi como qualquer dia do ano em Montevideo, de frio.
Só há uma coisa que abomino tanto quanto a injustiça, o frio. Uma, obra humana, o outro, obra da natura. Assim era, era quando Vivaldi compôs As Quatro Estações, agora as quatro estações ou a falta delas também podem ser obras humanas, ou desumanas. Estou convencida que, enquanto o planeta superaquece, a humanidade resfria com o derretimento das geleiras, pelo menos a humanidade do sul da América do Sul, que experimentou frio atípico no ano que passou.
A única tradição que celebro religiosamente todo natal e ano novo é a falta de luz na cidade, ainda bem que a cidade luz é Gramado, Porto Alegre nunca poderia sediar tal evento. A queda de luz veio com o cair da noite de 31 de dezembro, consequência do consumo desmedido de energia que acompanha o consumismo desmedido destas datas, cuja comemoração contradiz o cristianismo em todo seu dogma e cartilha. Os sete pecados capitais são alforriados para satisfazer os pecados do capital: o lucro, seu acúmulo. Há quem acredite muito, há quem acredite pouco, há quem não acredite, mas todos terão crédito. Ao meio dia do 24 de dezembro, apenas uma das empresas que dominam o mercado de cartões de crédito e débito no país registrou 655 operações em um segundo, a estimativa era que no dia seguinte passassem de 800. Nosso afresco atual - se a pós modernidade nos permitisse algum gênio à altura de Da Vinci - seria a pintura de um enorme presépio bem iluminado com os reis magos pagando os presentes do menino no Cielo.
Escrevia no escuro e o único foco de luz era a brasa do charuto aceso até Hanna aparecer iluminando com seu tablet - presente de natal claro - havia pedido para ela cantar Maná depois que meu Silvio Rodriguez parou junto com o apagão. A cena da noite da "virada" em casa era algo como se o mar que separa Cuba dos EUA secasse e seus territórios se juntassem: uma com seu habano na janela da área de serviço escrevendo à mão no escuro, a outra ao lado segurando o tablet que toca música e funciona até quando a gente não quer que funcione. Agora brilhavam além da brasa, o enorme par de olhos verdes dela e os azuis do siamês. Energia elétrica de volta, voltei para o quarto e para Silvio.
Para estarmos completamente agasalhados e ainda assim passar frio no novembro montevideano só poderíamos ser dois brasileiros, uma uruguaia abrasileirada e um cubano (por mais caliente que o cubano fosse). Cônscia de minha hipotermia e do viento sur de Montevideo havia ido para o show, que seria num pequeno estádio, prevenida de chale de lã e tudo. Lud e Fonsequinha nem tanto. Havíamos nos deparado com o estádio depois de passar por um "mini bosque" dentro de um parque onde se localizava o Charrúa. O cheirinho das tortas fritas, uma massa simples com forma de pão árabe frita em gordura animal, desafia meu vegetarianismo adulto trazendo uma infância em que aquelas tortas eram sinônimo de festa, futebol, música e trunfo - não havia satisfação maior para uma criança que pedir dinheiro para comprar torta frita e voltar com aquele troféu que, carregado por duas mãozinhas, sob a admiração de dois olhinhos, mais parece uma lua cheia.
Nos abancamos a uma distância em que podíamos ver Silvio além de escutá-lo, havia um mês as entradas tinham sido compradas pelos amigos Sebastián Jantos e Rossanna Attias numa verdadeira transação econômica Porto Alegre - Montevideo que contou com a mãe da Claudia e a mãe da Ro, ou seja, havia mais pessoas envolvidas na árdua compra dos ingressos que as que fomos ao concierto. Durante a apresentação Silvio reclamou do frio, Lud, Fonseca e eu entendemos perfeitamente, os outros quinze mil, todos uruguaios, caíram no riso e retrucaram: - Esto no es frio!
Bom comunista que é, dedicou uma música ao público das arquibancadas que "tinham menos e por isso compraram as entradas mais baratas", eu havia acabado de pagar o valor do ingresso a Fonseca que me havia feito empréstimo na data da compra, investi meu salário de vendedora para estar lá, em outro país a meio caminho do palco, talvez boa parte dos que estavam nos lugares menos privilegiados tenha decidido ir de última hora. Mas meu orgulho pequeno-burguês ferido não poderia sobrepôr-se àquele senso de justiça e humanismo, Silvio manda, aplaudi a declaração com entusiasmo. Vinte minutos depois do início da apresentação, grupos expressivos de pessoas ainda chegavam, sinal de que era um evento popular, no qual o chegar de ônibus, o pegar uma cerveja antes de sentar, o chegar atrasado mesmo, eram parte do espetáculo. As pessoas foram ao estádio ver Silvio Rodrigues como se fossem ver futebol, Brecht diria que é o músico perfeito, o músico das massas, o músico do materialismo histórico.
Os pedidos urrados da plateia eram os mais variados, se ouvia: - Silvio, cantá Unicornio! - Silvio, cantá Playa Girón! - Silvio, cantá El breve espacio!
Até que uma gritou: - Silvio, cantá lo que quieras!
Eu pedi Canción urgente para Nicarágua, tenho impressão que ele chegou a parar por uma fração de segundos para certificar-se que estava mesmo ouvindo aquilo, é, havia um dinossauro no meio do público, e era eu.
Minha expectativa para aquele concierto era descomunal, até pouco tempo, o Uruguay e Silvio me eram memória preciosa de um mundo cujo passado foi precipitado artificialmente, não esperava tê-los novamente, ali, juntos. O Uruguay em que nasci já havia rasgado seu papel de Suíça latinoamericana, repleto de velhos carros e esvaziado de uma parcela importante de seu povo que havia deixado o país exilada política ou economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo sem superação: a barbárie. A Cuba em que Silvio vivia, já havia rasgado seu papel de cassino latinoamericano, repleta de velhos carros e esvaziada de uma parcela importante de sua burguesia que havia deixado o país exilada política e economicamente, numa generosa amostra do que pode ser o pós-capitalismo superado: o socialismo.
Agora eu esperava que o Uruguay cantasse do início ao fim junto com Silvio, mas boa parte do tempo só o escutou. Aquele não cantar junto com o artista destoava das tortas fritas iniciais, dos atrasos finais, do lugar onde foi realizado o show, e dos gritinhos emocionados entre uma música e outra, só combinava mesmo com o nome pelo qual é conhecido um show no Uruguay - concierto-, na hora do vamos ver, parecia um concerto clássico, no Brasil as pessoas cantariam junto, eu não ousava cantar sozinha com a voz desafinada que dói, com o timbre baixo de Silvio e o silêncio fúnebre durante algumas músicas seria alvo de uma torta frita se acompanhasse cantando. Não foi todo o tempo assim claro, alguns hinos rodrigueanos tiveram direito a coro massivo, alguns.
A certa altura do concierto Silvio foi homenageado como visitante Ilustre de Montevideo, já perto do final o visitante ilustre pediu ao público que sorrisse para ele filmar e postar em seu blog, "sinó no me lo creen"...
O concierto contou com as flautas mágicas de uma moça que à primeira vista, por sua postura, vestimenta e cabelos, parecia uma freira e ao tocar seu clarinete e flautas mais parecia uma ninfa. Silvio a acompanhava enfeitiçado, o público estarrecido - o que talvez explique os silêncios fúnebres, talvez fossem silêncios celestiais. A nostalgia e a doçura das melodias do músico harmonizavam com o sopro dos instrumentos dela de um modo que parecia encantado por suas próprias composições, algumas concebidas e executadas há mais tempo que o tempo de vida da clarinetista. Eu não sabia mas depois descobri, Silvio estava encantado pela instrumentista e pela esposa Niurka González.
Quando o amor ali já havia tomado o poder, quando já havia se estabelecido como estética oficial, adentra o palco Amaury, outro cubano, amigo de Silvio, músico que não seria bem daqueles que caem no gosto dos que lotaram o Charrúa. Então Amaury numa simplicidade e alegría comoventes contou porque havia atravessado a América Latina para cantar aos uruguaios.
A música que seguiria, "La uruguaya", foi composta por ele para Alejandra, uma uruguaia chegada em Cuba com seus pais depois do último golpe civil-militar e do terrorismo de Estado instaurados no Uruguay. Alejandra chegou à ilha grávida e por lá não ficou muito tempo, mas o tempo suficiente para enamorar Amaury, o companheiro cubano se mostrou companheiro de vida e ela dedicou o nome de seu filho àquele homem apaixonado e generoso. Amaury lhe dedicou a música e prometeu cantá-la para ela, no país dela.
Amaury cumpriu a promessa quase quarenta anos mais tarde, Alejandra estava na plateia. Por acaso, eu também.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Una
Uno, busca lleno de esperanzas
el camino que los sueños
prometieron a sus ansias...
Sabe que la lucha es cruel
y es mucha, pero lucha y se desangra
por la fe que lo empecina...
Uno, Discepolo.
Una
- Como tu aguenta essa cabeça efervescente? Esta loja deve ser a terapia dela...
Foi assim que Bárbara Benz, cliente do comércio em que trabalho, artista plástica talentosa, querida e delicada me fez escorregar para debaixo do balcão da loja ao largar essa para meu chefe numa faceta franco atiradora que não lhe conhecia. Bárbara Benz passou por cima de mim feito uma Mercedez Benz.
De fato entre a loja e eu há uma dialética, eu conto moedinhas (isso ajuda mesmo a focar), conto sementinhas, conto de um tudo para as velhinhas. Em contrapartida, enlouqueço bastante os outros integrantes da empresa, lhes enlouqueço os horários, as cabeças e as vistas. O pequeno banheiro vira camarim umas tres vezes ao dia, e dele saio propícia para o teatro, para o tango, para a academia, para o que der e vier. O chefe/DJ ajuda e quando me vê entrar de mala e cuia no banheiro troca a música ambiente, sempre clássica, por um tango ou algum jazz que acompanhe melhor o turbilhão que vai passar por aquele metro quadrado. As colegas já tem até um cronograma de revezamento para ver quem fica até mais tarde em meu lugar, amadas.
Sábado era a vez do tango, mas a semana já havia começado com ele. Mirian, minha professora, na tentativa de conciliar minha falta de horários e a consequente ausência nos ensaios, me delegou uma apresentação "solo", ou melhor, sola, solita nomás. Na mais absoluta inocência me sugeriu que recitasse uma poesia em homenagem a Buenos Aires. Uma uruguaya, de Paysandú, uma sanducera, recitando um tango em homenagem a Buenos Aires? A Buenos Aires que esmagou a luta de Artigas e do povo da Banda Oriental, que nos quer usurpar a nacionalidade de Gardel, que sonha em fazer alfajores melhores que os nossos? Nem respondi, só ri...
Mas chauvinismos à parte fui atrás de algum tango, argentino ou uruguaio, com espanhol acessível a lusofalantes, que pudesse expressar a nostalgia e o sentir do povo rioplatense. E não achei nada mais nostálgico e rioplatense que o cubano Ibrahim Ferrer cantando "Uno", como sempre, terminei com um cubano, fumando um habano. Minha vida seria tão mais fácil e feliz se o Uruguay fizesse fronteira com Cuba e não com a Argentina, sem contar que o que a Argentina teve de melhor, el Che, perdeu pra Cuba mesmo.
O desafio da semana foi criar uma partitura de movimentos para a declamação, recitando o trecho escolhido do tango no compasso da música mas sem cantar, descobrindo eixo nos passos que, criados para serem executados a dois num equilíbrio de corpos, seriam feitos por apenas uma pessoa, com poucas horas de ensaio. Nenhum aperto que não tenha passado no Grupo Trilho de Teatro Popular e justo na semana emocionante em que o grupo foi premiado com merecidos tres Tibicueras de Teatro Infantil e o Gremio Esportivo Ferrinho sediou a assinatura da regulamentação da Vila dos Ferroviários, conquistas importantes comemoradas pelo Trilho e pelos Ferroviários.
As escalas de terça a sexta foram casa, loja, comitê. A casa fica a cinco minutos da loja à direita e o comitê fica a cinco minutos da loja à esquerda, tudo voando claro. No bar/ comitê Latinoamericano, tive o espaço, a tranquilidade, e a beleza necessária para criar e ensaiar a participação que faria na apresentação de tango. Já era sexta-feira e eu ainda acrescentava passos, passos que comecei a aprender há um ano e mal domino, mas vamos lá, pensei em ensaiar às sete e meia da manhã do sábado da apresentação, antes de começar a trabalhar, ficaria mais segura. Roberto do comitê me olhou de um jeito que só faltou dizer: pirou cara-pálida? Mas educadamente me disse não ser possível.
No sábado às cinco da manhã eu não fazia ideia de onde estava mas percebi que dormia em casa e o celular apitava, pensei que fosse algum amigo "tarja-preta" daqueles que não tem horário para ligar ou enviar mensagens quando estão deprês. Demorei mais ainda para entender a mensagem, mas era clara como o dia: Oi Ana, podes vir às 7:30 ensaiar. Era Roberto (que deve achar que todo mundo vai dormir às cinco da manhã como ele e os outros donos de bares da cidade) na maior das boas intenções. Olhei pro espelho e quase não me vi de tão inchados e vermelhos de sono que me estavam os olhos, pensei em ensaiar toda capenga mesmo mas lembrei que havia deixado a chave do comitê em minha bolsa na loja, na loja fechada. O dono da loja deveria estar se preparando para fazer as compras na tradicional feira orgânica da José Bonifácio que abastece nossa pequena feira orgânica na Venâncio Aires. Não conseguiria nem ensaiar nem mais dormir, pensei até em fazer a feira com o chefe (programão de sábado de madrugada!) e, por sorte, antes de pensar em algo mais já havia tombado na cama novamente.
No final da tarde, depois de atravessar a loja e os clientes toda caracterizada como quem atravessa o salão pronta para bailar, fui direto à casa de Mirian que me levaria para a apresentação, e me aliviou dizendo que poderia ensaiar por uma hora ali até ela aprontar-se. Na sala espelhada de piso deslizante da professora, coloquei a música e, depois de pedir para ela não ver antes de finalizar detalhes, retomei os ensaios. Dois minutos depois de ter atendido bulhufas meus apelos, Mirian adentra a sala em lágrimas comovida com aquele tango quase cantado, quase cubano, quase acabado.
Assim que Lorena chegou, Dorgel e Mirian saíram com o carro carregado de sacolas, araras para figurinos, malas carregadas e duas uruguayas "muy malas". O caminho era longo e cheio de paradas para que, onde cabem cinco, coubessem uns dez. Antes mesmo de subirem Ariana e Takeda, Lorena e eu ensurdecemos os professores num rioplatense metralhado e alto cujas variações se resumiam ao montevideano lunfardo, carregado de gírias capitais dela e o paysano sem "esses", rasgado, quase árabe meu. O fato de termos passado em questão de minutos por todos os assuntos da vida e pelos assuntos de toda a vida dos outros pode haver contribuido consideravelmente para dar emoção à charla até nos depararmos com as caras estupefatas dos dois que não conseguiram emitir som algum perante aquela epopeia gaucha.
Já na casa de Regina para um breve aquecimento, nos organizamos em caravana para chegar ao local da apresentação junto com a chuva. Finalmente lá Fortuna nos esperava metido a anfitrião e quase o mordi quando veio me oferecendo as comidas do camarim cujas opções eram carne de vaca com alguma fritura, carne de frango com alguma outra fritura, e carne frita. Ele faria um bêbado na entrada de um dos tangos, éramos literalmente o bêbado e a equilibrista, ele agarrado em sua garrafa de 51 para adentrar no personagem e eu tentando fazer o 8 atrás sem adentrar o chão. Ana Mari e Regina protagonizaram uma cena hollywodiana quando, numa pernada dupla, fizeram voar pelos ares a bandeja do garçom que passava com as carnes e as frituras que se espalharam aos quatro ventos, qué lo tiró, qué patada...
As combinações finais e a preparação para a entrada são sempre o estopim para alguma crise, e a completa patetice do gênero antagônico conseguiu tirar Lorena do sério, eles estavam más perdidos que galleta en boca de vieja, se calentó la Lore. Crise superada começou o tango ao enunciado da própria Lorena, os tangueros ocuparam com Mirian e Dorgel mais uma pista desta cidade. Minha tarefa mais arrebatadora ali não seria a apresentação que faria só e em instantes, fui delegada como assessora de troca dos, sempre milhares, de figurinos da profe, afinal, naquele monte de malas no carro estavam todos eles. Eu cumpri minha tarefa e os figurinos também, ela estava lindona e além de dançar com Dorgel, foi acompanhada por Alfredo, argentino guapo e amigo que nos deixa no sufoco com os horários (outra vez o comércio na vida dos tangueros) mas quando chega ao salão mostra a que veio.
Nas mesas cenicamente dispostas em volta da pista, quem não dançava esperava sua vez na maior elegância. Teve tango a dos, tango a tres, tango en parejas y una milonga arrabalera. Além do público compenetrado e deslumbrado, havia o público desinteressado e mal educado, uma meia duzia de elementos que consideram a arte pano de fundo de sua vida fútil e suas conversas sobre bebidas carros e mulheres, porra, se trocar os carros por cavalos o tango fala de tudo isso, custava prestar atenção? Esperei que fossem respeitar minha apresentação baseada na palavra e na escuta, continuaram na maior algazarra, em minha frase final me dirigi até a mesa em que estavam e lhes gritei o texto, que nada... ouviram um mosquito zumbir e voltaram à festinha particular. Apesar de poluir a sonoridade tanto da declamação quanto dos tangos dançados pelo grupo, o grupelho pentelho não conseguiu tirar a emoção dos trabalhos apresentados que envolveram o restante do público que, em pé, apreciou a noite e, a convite se somou para dançar um tango final no qual mandou muito bem.
Após o término, a música tecno dominou a festa, era hora de descontrair e agora sim, cada um beber e dançar como quisesse. Foi isso que fizeram todos, Dorgel decidiu que era o astro da festa e foi para o centro requebrar, Lorena quase se descadeirou durante a Shakira, Mirian deve ter decidido que depois de dançar tão bem durante os tangos iria quebrar a rotina, deixou Dorgel boquiaberto depois de uma dancinha meio bizarra que ele não imagina de onde tenha saído. A primeira-dama do Fortuna lhe deu uma canseira, estava mais energética que Gatorade com vodka. Paola, Tô e Juliana agitaram como sempre em triângulo equilátero. Alfredo comandou as massas numa coreografia de Y.M.C.A. Alexandra é perita na civil e nas danças de salão todas. Paulo dança tango até quando toca forró.
Eu, descobri que nos vidros que enfeitavam as mesas havia alfajorzinhos uruguaios, magra com cabeça de gorda ou gorda com corpo de magra, fiquei acima de qualquer suspeita, sentada à mesa comendo um, dois, tres, quatro, cinco...alfajores. Tentei conseguir gelo para minha bebida com o garçom mas aconteceu a mesma coisa que na formatura da Fifi, eles somem, desisti da bebida e do garçom, minha relação freudiana com eles só se compara à minha relação de estrutura histérica com motoboys. O restante dos alfajores levei como cachê, ou butim de guerra se levar em consideração os elementos que não calaram a boca durante a apresentação.
Novamente na casa de Mirian para recolher algumas roupas, chamei um táxi para que andasse algumas quadras comigo até em casa. O rapaz encarregado da segurança do predio naquela noite disse ter sido bom eu ficar esperando o serviço no banquinho da entrada, que se eu esperasse na rua ele teria que ir comigo. Eu devia medir um metro a mais que ele, havia roubado alfajores na festa e apesar de bem penteada, vestida de tango, calçava um tenis enorme número quarenta, fiquei pensando o que teria levado aquele rapaz a imaginar que eu precisaria de segurança.
Na próxima apresentação quero dançar ao lado de minha amiga Angelita, outra una que faz falta.
O tango pode ser o mesmo, porque o caminho da vida será o mesmo, cheio de esperança e nostalgia intercaladas, porque unos perderam seu coração mas não há una que não tenha dado o seu.
Si yo tuviera el corazón
el corazón que di
si yo pudiera como ayer
querer sin presentir.
Si yo tuviera el corazón
el mismo que perdi.
el camino que los sueños
prometieron a sus ansias...
Sabe que la lucha es cruel
y es mucha, pero lucha y se desangra
por la fe que lo empecina...
Uno, Discepolo.
Una
- Como tu aguenta essa cabeça efervescente? Esta loja deve ser a terapia dela...
Foi assim que Bárbara Benz, cliente do comércio em que trabalho, artista plástica talentosa, querida e delicada me fez escorregar para debaixo do balcão da loja ao largar essa para meu chefe numa faceta franco atiradora que não lhe conhecia. Bárbara Benz passou por cima de mim feito uma Mercedez Benz.
De fato entre a loja e eu há uma dialética, eu conto moedinhas (isso ajuda mesmo a focar), conto sementinhas, conto de um tudo para as velhinhas. Em contrapartida, enlouqueço bastante os outros integrantes da empresa, lhes enlouqueço os horários, as cabeças e as vistas. O pequeno banheiro vira camarim umas tres vezes ao dia, e dele saio propícia para o teatro, para o tango, para a academia, para o que der e vier. O chefe/DJ ajuda e quando me vê entrar de mala e cuia no banheiro troca a música ambiente, sempre clássica, por um tango ou algum jazz que acompanhe melhor o turbilhão que vai passar por aquele metro quadrado. As colegas já tem até um cronograma de revezamento para ver quem fica até mais tarde em meu lugar, amadas.
Sábado era a vez do tango, mas a semana já havia começado com ele. Mirian, minha professora, na tentativa de conciliar minha falta de horários e a consequente ausência nos ensaios, me delegou uma apresentação "solo", ou melhor, sola, solita nomás. Na mais absoluta inocência me sugeriu que recitasse uma poesia em homenagem a Buenos Aires. Uma uruguaya, de Paysandú, uma sanducera, recitando um tango em homenagem a Buenos Aires? A Buenos Aires que esmagou a luta de Artigas e do povo da Banda Oriental, que nos quer usurpar a nacionalidade de Gardel, que sonha em fazer alfajores melhores que os nossos? Nem respondi, só ri...
Mas chauvinismos à parte fui atrás de algum tango, argentino ou uruguaio, com espanhol acessível a lusofalantes, que pudesse expressar a nostalgia e o sentir do povo rioplatense. E não achei nada mais nostálgico e rioplatense que o cubano Ibrahim Ferrer cantando "Uno", como sempre, terminei com um cubano, fumando um habano. Minha vida seria tão mais fácil e feliz se o Uruguay fizesse fronteira com Cuba e não com a Argentina, sem contar que o que a Argentina teve de melhor, el Che, perdeu pra Cuba mesmo.
O desafio da semana foi criar uma partitura de movimentos para a declamação, recitando o trecho escolhido do tango no compasso da música mas sem cantar, descobrindo eixo nos passos que, criados para serem executados a dois num equilíbrio de corpos, seriam feitos por apenas uma pessoa, com poucas horas de ensaio. Nenhum aperto que não tenha passado no Grupo Trilho de Teatro Popular e justo na semana emocionante em que o grupo foi premiado com merecidos tres Tibicueras de Teatro Infantil e o Gremio Esportivo Ferrinho sediou a assinatura da regulamentação da Vila dos Ferroviários, conquistas importantes comemoradas pelo Trilho e pelos Ferroviários.
As escalas de terça a sexta foram casa, loja, comitê. A casa fica a cinco minutos da loja à direita e o comitê fica a cinco minutos da loja à esquerda, tudo voando claro. No bar/ comitê Latinoamericano, tive o espaço, a tranquilidade, e a beleza necessária para criar e ensaiar a participação que faria na apresentação de tango. Já era sexta-feira e eu ainda acrescentava passos, passos que comecei a aprender há um ano e mal domino, mas vamos lá, pensei em ensaiar às sete e meia da manhã do sábado da apresentação, antes de começar a trabalhar, ficaria mais segura. Roberto do comitê me olhou de um jeito que só faltou dizer: pirou cara-pálida? Mas educadamente me disse não ser possível.
No sábado às cinco da manhã eu não fazia ideia de onde estava mas percebi que dormia em casa e o celular apitava, pensei que fosse algum amigo "tarja-preta" daqueles que não tem horário para ligar ou enviar mensagens quando estão deprês. Demorei mais ainda para entender a mensagem, mas era clara como o dia: Oi Ana, podes vir às 7:30 ensaiar. Era Roberto (que deve achar que todo mundo vai dormir às cinco da manhã como ele e os outros donos de bares da cidade) na maior das boas intenções. Olhei pro espelho e quase não me vi de tão inchados e vermelhos de sono que me estavam os olhos, pensei em ensaiar toda capenga mesmo mas lembrei que havia deixado a chave do comitê em minha bolsa na loja, na loja fechada. O dono da loja deveria estar se preparando para fazer as compras na tradicional feira orgânica da José Bonifácio que abastece nossa pequena feira orgânica na Venâncio Aires. Não conseguiria nem ensaiar nem mais dormir, pensei até em fazer a feira com o chefe (programão de sábado de madrugada!) e, por sorte, antes de pensar em algo mais já havia tombado na cama novamente.
No final da tarde, depois de atravessar a loja e os clientes toda caracterizada como quem atravessa o salão pronta para bailar, fui direto à casa de Mirian que me levaria para a apresentação, e me aliviou dizendo que poderia ensaiar por uma hora ali até ela aprontar-se. Na sala espelhada de piso deslizante da professora, coloquei a música e, depois de pedir para ela não ver antes de finalizar detalhes, retomei os ensaios. Dois minutos depois de ter atendido bulhufas meus apelos, Mirian adentra a sala em lágrimas comovida com aquele tango quase cantado, quase cubano, quase acabado.
Assim que Lorena chegou, Dorgel e Mirian saíram com o carro carregado de sacolas, araras para figurinos, malas carregadas e duas uruguayas "muy malas". O caminho era longo e cheio de paradas para que, onde cabem cinco, coubessem uns dez. Antes mesmo de subirem Ariana e Takeda, Lorena e eu ensurdecemos os professores num rioplatense metralhado e alto cujas variações se resumiam ao montevideano lunfardo, carregado de gírias capitais dela e o paysano sem "esses", rasgado, quase árabe meu. O fato de termos passado em questão de minutos por todos os assuntos da vida e pelos assuntos de toda a vida dos outros pode haver contribuido consideravelmente para dar emoção à charla até nos depararmos com as caras estupefatas dos dois que não conseguiram emitir som algum perante aquela epopeia gaucha.
Já na casa de Regina para um breve aquecimento, nos organizamos em caravana para chegar ao local da apresentação junto com a chuva. Finalmente lá Fortuna nos esperava metido a anfitrião e quase o mordi quando veio me oferecendo as comidas do camarim cujas opções eram carne de vaca com alguma fritura, carne de frango com alguma outra fritura, e carne frita. Ele faria um bêbado na entrada de um dos tangos, éramos literalmente o bêbado e a equilibrista, ele agarrado em sua garrafa de 51 para adentrar no personagem e eu tentando fazer o 8 atrás sem adentrar o chão. Ana Mari e Regina protagonizaram uma cena hollywodiana quando, numa pernada dupla, fizeram voar pelos ares a bandeja do garçom que passava com as carnes e as frituras que se espalharam aos quatro ventos, qué lo tiró, qué patada...
As combinações finais e a preparação para a entrada são sempre o estopim para alguma crise, e a completa patetice do gênero antagônico conseguiu tirar Lorena do sério, eles estavam más perdidos que galleta en boca de vieja, se calentó la Lore. Crise superada começou o tango ao enunciado da própria Lorena, os tangueros ocuparam com Mirian e Dorgel mais uma pista desta cidade. Minha tarefa mais arrebatadora ali não seria a apresentação que faria só e em instantes, fui delegada como assessora de troca dos, sempre milhares, de figurinos da profe, afinal, naquele monte de malas no carro estavam todos eles. Eu cumpri minha tarefa e os figurinos também, ela estava lindona e além de dançar com Dorgel, foi acompanhada por Alfredo, argentino guapo e amigo que nos deixa no sufoco com os horários (outra vez o comércio na vida dos tangueros) mas quando chega ao salão mostra a que veio.
Nas mesas cenicamente dispostas em volta da pista, quem não dançava esperava sua vez na maior elegância. Teve tango a dos, tango a tres, tango en parejas y una milonga arrabalera. Além do público compenetrado e deslumbrado, havia o público desinteressado e mal educado, uma meia duzia de elementos que consideram a arte pano de fundo de sua vida fútil e suas conversas sobre bebidas carros e mulheres, porra, se trocar os carros por cavalos o tango fala de tudo isso, custava prestar atenção? Esperei que fossem respeitar minha apresentação baseada na palavra e na escuta, continuaram na maior algazarra, em minha frase final me dirigi até a mesa em que estavam e lhes gritei o texto, que nada... ouviram um mosquito zumbir e voltaram à festinha particular. Apesar de poluir a sonoridade tanto da declamação quanto dos tangos dançados pelo grupo, o grupelho pentelho não conseguiu tirar a emoção dos trabalhos apresentados que envolveram o restante do público que, em pé, apreciou a noite e, a convite se somou para dançar um tango final no qual mandou muito bem.
Após o término, a música tecno dominou a festa, era hora de descontrair e agora sim, cada um beber e dançar como quisesse. Foi isso que fizeram todos, Dorgel decidiu que era o astro da festa e foi para o centro requebrar, Lorena quase se descadeirou durante a Shakira, Mirian deve ter decidido que depois de dançar tão bem durante os tangos iria quebrar a rotina, deixou Dorgel boquiaberto depois de uma dancinha meio bizarra que ele não imagina de onde tenha saído. A primeira-dama do Fortuna lhe deu uma canseira, estava mais energética que Gatorade com vodka. Paola, Tô e Juliana agitaram como sempre em triângulo equilátero. Alfredo comandou as massas numa coreografia de Y.M.C.A. Alexandra é perita na civil e nas danças de salão todas. Paulo dança tango até quando toca forró.
Eu, descobri que nos vidros que enfeitavam as mesas havia alfajorzinhos uruguaios, magra com cabeça de gorda ou gorda com corpo de magra, fiquei acima de qualquer suspeita, sentada à mesa comendo um, dois, tres, quatro, cinco...alfajores. Tentei conseguir gelo para minha bebida com o garçom mas aconteceu a mesma coisa que na formatura da Fifi, eles somem, desisti da bebida e do garçom, minha relação freudiana com eles só se compara à minha relação de estrutura histérica com motoboys. O restante dos alfajores levei como cachê, ou butim de guerra se levar em consideração os elementos que não calaram a boca durante a apresentação.
Novamente na casa de Mirian para recolher algumas roupas, chamei um táxi para que andasse algumas quadras comigo até em casa. O rapaz encarregado da segurança do predio naquela noite disse ter sido bom eu ficar esperando o serviço no banquinho da entrada, que se eu esperasse na rua ele teria que ir comigo. Eu devia medir um metro a mais que ele, havia roubado alfajores na festa e apesar de bem penteada, vestida de tango, calçava um tenis enorme número quarenta, fiquei pensando o que teria levado aquele rapaz a imaginar que eu precisaria de segurança.
Na próxima apresentação quero dançar ao lado de minha amiga Angelita, outra una que faz falta.
O tango pode ser o mesmo, porque o caminho da vida será o mesmo, cheio de esperança e nostalgia intercaladas, porque unos perderam seu coração mas não há una que não tenha dado o seu.
Si yo tuviera el corazón
el corazón que di
si yo pudiera como ayer
querer sin presentir.
Si yo tuviera el corazón
el mismo que perdi.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Eles mataram a polícia
Chico Buarque no rádio, maquiagem espalhada na mesa, vinho no gargalo. Só poderia ser a preparação de um grupo de atores para entrar em cena. Nosso entrar em cena, nem sempre é um "entrar em cena", pode haver algum longo trajeto até nosso espaço de apresentação, nossos camarins já foram a rua, o sindicato, a Assembleia Legislativa, a universidade federal, uma escola, e alguns deles ficavam até em teatros. Nada anormal se fosse para um grupo de teatro de rua, o que não é nosso caso.
Desta vez nosso ponto de encontro foi um belo lugar localizado no bairro agora Farroupilha (cá entre nós, Santana). Solícito e solidário como sempre, Roberto do Comitê Latinoamericano só não abriu as portas porque eu estava com a chave há tempos, neste "bar politizado", ele já me aguentou encenando, cantando, dançando, discursando, bebendo, reclamando da bebida e a última coisa que esperava é ver duas viaturas da SUSEPE estacionar na porta do local para transportar a trupe.
Nesta ocasião seríamos as estrelas (nada daquelas algemas nem do "porta malas" nada anatômico da apresentação contra o aumento da passagem de ônibus), o Grupo Trilho de Teatro Popular apresentaria seu teatro na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Recebi os motoristas com um charuto aceso numa mão e uma garrafa com vinho na outra, devem ter achado que éramos um bando de artistas pequeno-burgueses loucos para começar a revolução tomando a bastilha, infelizmente somos todos assalariad@s e a maioria disponibilizou o turno em que não trabalha, meu chefe me liberou com esperanças de que finalmente não me deixassem sair do presídio...
Já na casa prisional fomos conduzid@s a um espaço bem organizado e amplo que inclusive dispunha de pequeno palco, do qual prescindimos pois nosso teatro é sempre olho no olho e nosso distanciamento é brechtiano e não espacial. Mal havíamos começado o ensaio musical e uma agente adentrou a sala trazendo o público, interrompemos e nos posicionamos para começar "A Decisão", peça didática de Bertolt Brecht, como bem anuncia Adriana no prólogo, que traz quatro agitadores soviéticos e um jovem camarada chinês em meio à visceral polêmica sobre os métodos revolucionários e a cruel contra revolução.
A expectativa do grupo para aquela apresentação, a expectativa das mulheres que nos assistiriam, nos arrebatou uma fala que outra e nos levou a algum erro cênico que não cometemos facilmente. Os olhos de Giovanna brilharam durante toda a apresentação, mas por sorte os colegas não me aprontaram o mesmo que na apresentação feita há um ano para crianças em situação de risco (leia-se expostas à pobreza e sua violência) em São Leopoldo, quando me deparei com todos chorando já na primeira cena.
A Decisão é cheia de falas conceituais e muitas delas com entendimento restrito, a uma determinada época vivida por países marcados por momentos revolucionários ou formalizado de quem é estudioso. Foi escrita para ser realizada por militantes operários na Alemanha de 30. Nosso desafio é, desde sempre, compreendê-la e apropriar-nos da capacidade do teatro de mostrar-se por vias próprias, únicas.
Depois da formalidade e contenção dos primeiros atos, as primeiras risadas, os primeiros comentários mútuos sobre as cenas que nos chegavam aos ouvidos como bruburinho e os quais cessaram quando a agente que à distância acompanhava, reprimiu com sinal de silêncio as reações espontâneas. A quietude foi total e não repreendeu somente as mulheres sob sua autoridade mas chocou a nós cuja atuação depende muito da comunicação e reação do público e nunca havíamos visto um moderador de humores em nossas obras para adultos.
A cena mais esperada por nós e que, sabíamos, mais surpreenderia as detentas, era a "4" em que o policial que reprime trabalhadores numa fábrica - personagem brilhantemente construído e encenado por Carol - é morto durante uma briga. A fala dos operários envolvidos na briga: nós matamos um policial, foi antecipado por uma das mulheres: eles mataram a polícia.
A música, componente essencial da peça, tem arranjos inspiradores nos quais Baiano e Gabriel são um espetáculo à parte com violão, bandolim, xilofone e pequenos instrumentos dos mais variados, e é durante a trilha sonora que eu abandono a agitadora contida e ponderada e evoco uma Ana sinuosa que aflora com a dança. Em meio a quebras de quadril e olhares provocadores fitei pares de olhos pintados e algumas caras bonitas que com certeza já experiemtaram - por idade ou malícia - a sensualidade muito mais que eu, mas os olhares que encontrei deixavam claro que minha sensualidade ali estava em ser livre, em fazer o que gosto, o que acredito, em não estar maculada socialmente, minha sensualidade, ali, humilhava. Terminada a apresentação em nosso habitual debate sobre a peça, uma delas pediu o violão, eu ofereci o violão e o violonista, deixei Gabriel roxo de vergonha e para trás aquela impressão de que, naquele momento, as atrizes éramos mulheres e elas apenas detentas.
Durante o debate, uma das primeiras perguntas, justamente feita pela moça que pediu o violão, foi "se nós éramos mesmo comunistas", a do lado perguntou se é muito difícil a batalha dos atores até conseguir fazer uma novela. Os graus de alienação e consciência se assemelham e reproduzem a sociedade além grades. As perguntas não pararam por aí e continuavam sobre o texto, sobre a dificuldade de sua linguagem, sobre os atores, sobre a interpretação. Ao responder um dos questionamentos Dani disse estarmos um pouco apreensivos antes da apresentação, rapidamente uma mulher interviu indagando se essa "apreensão" se devia ao fato do local ser um PRESÍDIO. Esclarecemos que nossa angústia se devia ao tempo reduzido que tivemos para ensaiar desde que a data foi marcada, cujo fator era agravado pela falta de um ator sem o qual tivemos que alterar o roteiro. Saber que faríamos nosso teatro, que é político, pedagógico, social e nossa bandeira em defesa da justiça e da alegria, para pessoas que vivem privadas de liberdade não era angústia, era diferente, era uma emoção inusitada, inédita.
A responsável pela ponte Madre Pelletier - Grupo Trilho foi Maynar, amiga, uruguaia, siamesa na forma e no signo. Maynar viu "A Decisão" pela primeira vez em temporada no Teatro de Câmara de Porto Alegre, à época gostou e comentou, Fábio gostou do comentário dela e então estavam apresentados ela e o grupo. Psicóloga estagiária sempre colocou suas teorias em prática e através dela eu já havia participado de oficina sobre Escrita no semi-aberto feminino. Na Madre conhecemos Simone, a vice- diretora com a qual projetamos a volta e Faltemara, psicóloga, futura mãe de Lorenzo, mais conhecida como FAL (Fuzil Automático Leve), não por milica e sim por perpicaz e certeira nas conotações.
Ao despedir-me lhes disse que voltaríamos, mas que bruta eu, uma delas saltou:
- Espero não estar mais quando voltarem.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
A corrupção permanente
Foi-se o tempo em que a grande discrepância entre socialdemocracia (leia-se PT e não a direita radical do PSDB) e oposição de esquerda (leia-se a única oposição) era sua revolução por etapas contra nossa revolução permanente. A socialdemocracia brasileira acabou com qualquer possibilidade de confronto ideológico ao instaurar a corrupção permanente, sustentação nada teórica e muito prática para garantir a governabilidade.
Uma das medidas mais aplicadas pelos governos comandados pelos petistas é, em princípio, uma bandeira histórica da classe trabalhadora: EMPREGO - de todos seus agentes políticos em cargos em comissão...
Manter o apoio de uma base de sustentação a um programa que cada dia se adapta mais a ruralistas, banqueiros e máfias sindicais só poderia ser garantido com constrangimento total da crítica interna através da dependência econômica dessa base de sustentação. A lógica deduzida dessa mesma base acomodada e corrompida é: o capital acumulou tanto no Brasil que os gastos com a máquina pública são irrisórios se comparados ao lucros dos capitalistas no país. A corrupção deve entrar nessa esteira para o petismo...
A corrupção no Brasil não começou com o operário metalúrgico do ABC e sim com o príncipe regente de Portugal (que não acreditava na corrupção num só país), o que merece estudo e indignação é como ferramentas históricas das classes dominantes se tornam necessárias para a labuta de setores identificados com a classe trabalhadora que chegam a comandar o Estado.
Depois de dois mandatos que garantiram a estabilidade necessária para o maior lucro da história de muitos bancos instalados no país, a direita tradicional, a mídia e a própria Dilma estão prontos para a "faxina". A faxina é por etapas e prepara uma sujeira maior ainda, um período de tecnocracia estatal. A objetividade racionalista do lucro e da eficiência para combater a corrupção e o pragmatismo, que só podem ser combatidos com controle popular efetivo e filosfia política. As fundações públicas de direito privado são ótimo exemplo de como a corrupção faz parte do lucro, da eficiência e da técnica tanto quanto da política.
Esta manhã deveria escrever copiosamente a segunda parte da crônica sobre a apresentação de Silvio Rodriguez, sobre a história de amor que moveu aquele "concierto", mas ontem uma assessora do governo do estado que comprou no comércio em que trabalho, quis muito que eu adulterasse a nota fiscal, para poder aprovar como gasto público, um macarrãozinho do colega assessor...
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