segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pajero Sexy, Nude Full


Beirava a meia-noite quando decidi encerrar meu domingo que, havia sido inteiro dedicado ao estudo da guerra civil espanhola, depois de adentrar em pormenores sobre a Alsácia-Lorena - é sabido que a Alsácia-Lorena não fica na España mas é como minha Amiga Lorena, mesmo sem querer, consegue gerar problemas de dimensões internacionais.


Não faz muito convidei Lorena para uma saída noturna, a noite seria uma criança, pelo menos até a meia-noite que é o horário em que começo a achar a noite uma criança chata e repetitiva e Lorena volta para casa cuidar suas crianças que de metáfóricas não têm nada. Estava tudo correndo às mil maravilhas, fora o fato dela estar escorrendo às mil maravilhas em função do calor insuportável que assola a cidade, eu já bebia bem feliz mas Lorena mal havia encostado no copo quando me alertou sobre um embrionário mal-estar no exato momento em que começou a tocar um tango, naquele instante poderia ser o Freud a trovar sobre o mal-estar na civilização, peguei Lorena jogamos mesa para um lado cadeiras para o outro e tangueamos nomás como si fuera esta noche la última vez.



E provavelmente tenha sido a última vez naquele lugar, porque eu mal havia saído da pose final e Lorena me olha: - Voy a vomitar ahora. Mas uma corridinha até o banheiro não seria impossível, numa angustia digna de um bom tango Lore segurou firme até lá, impossível foi achar o banheiro disponível. Depois de invadir a cozinha e pegar a primeira coisa vomitável que vi pela frente (uma caixa de papelão) veio o estrago e foi um papelão só, quando fomos abordadas naquela inevitável ação, deixei cair a caixa ao que o conteúdo se espalhou pelo chão para acabar de vez com qualquer possibilidade de ocultação e ocasionar fatal constrangimento. Enquanto eu limpava o chão com esfregão Lorena pulava ao meu redor: - Mirá! Mejoré, estoy bien ya! O "melhorei" dela era um melhorei tão pueril quanto o de uma criança resfriada que insiste em tomar banho de mangueira, no instante em que me prestei a parar o frenesi do esfregão e lhe olhei na cara parecia Gasparzinho, o fantasminha camarada, uma coisa transparente falando sem parar.

A Alsácia-Lorena e a Lorena rendem para uma boa historiadora e para uma boa amiga, respectivamente, capítulos copiosos que merecem ser escritos, por enquanto me resumo à crônica do fim de domingo. Depois de adentrar nos pormenores, beirar a meia-noite, refletir sobre a Alsácia e a Lorena, me plantei na frente da televisão para pintar as unhas (pior que ler só no domingo é ler no domingo e achar que leu demais...). Pintar as unhas não tem sido um evento raro depois que inventei de arranhar o chão na partitura de movimentos que criei para a personagem de Bertolt Brecht, Tereza Carrar, cuja história se passa na Andaluzia em 1936, o esmalte ajuda a proteger as unhas, mesmo que o nome da cor "Sexy Nude", a qual comprei sem achar grande coisa e resultou ficar lindíssima nas mãos, não denuncie proteger coisa alguma. Mas futilidade de comunista não dura muito, foi quando terminei a mão esquerda que meu "momento perua" foi interrompido. Já havia escutado uma sirene silenciar muito próximo - sempre que acontece penso que é um péssimo sinal pois significa que houve o óbito - outras se seguiram e igualmente silenciaram tão próximas quanto a primeira. Não pensei duas vezes, meu lado investigativo (descobrir em primeira mão) ou meu lado comunista (descobrir em primeira mão para traduzir aos vizinhos no dia seguinte depois de uma avaliação) superou meu lado paysano (esperar o dia seguinte para perguntar ao jornalista, ao comunista e aumentar em cem o número de mortos).

Se saísse do jeito que estava teria que torcer para as sirenes não serem da polícia e, pela terceira vez, ser detida não por ataque violento à ordem pública mas ao pudor, pesquei uma minissaia no armário e tentei mas não houve jeito, foi-se o esmalte da mão esquerda que ainda estava fresco, era demais querer uma unha bem pintada para poder arranhar o piso, saí noite adentro descabelada, com minha saia de pirigueti e com uma mão feita de "Sexy Nude" e a outra não, caso fosse uma batida policial no inferninho da esquina não voltava para casa tão cedo.

O "acidente" (não considero que os quase diários eventos desastrosos com automóveis nesta rua sejam acidentes, sempre antes de ouvir as batidas ouço a velocidade enlouquecida com que se deslocam) envolveu, além de seis pessoas, uma Pajero Full e um Gol. Desde minha chegada ao local até minha saída constatei o trânsito de, no mínimo, nove veículos de auxílio entre ambulâncias, carros de bombeiros, e viaturas da brigada militar e EPTC, do Gol restaram ferragens e pessoas presas nelas.

A barbárie do trânsito rodoviário e urbano é, em última instância, gestada numa mesma produção em série. Ao volante o indivíduo fútil, massificado, colonizado, explorado, oprimido, desvalorizado que acredita possuir valor apenas dentro de um latão com financiamento a perder de vista, na traseira desse indivíduo irresponsável, uma das indústrias mais poderosas do mundo, pressionando governos a fomentar crédito e isentar dos mais variados impostos sua mercadoria no esforço para evitar redução de lucros, o custo é imediatamente humano (a propaganda ofensiva confere ao fetiche poderes superhumanos e desmedidos que se traduzem em desastres a cada minuto), mediatamente planetário (a agressão ambiental é acelerada pela poluição causada por milhares de veículos em circulação em cada país) e alarmantemente público (segundo maior problema de saúde pública no Brasil com ocupação de 55% dos leitos hospitalares sem contar as doenças respiratórias que matam três crianças por dia em São Paulo). O governo brasileiro em sua política econômica sempre pronta a promover o "aquecimento" da economia que nada mais é que o consumismo exagerado é imediatamente, mediatamente e alarmantemente anti-ético. O único sinal a frear o carro-chefe da America Latina em suas importações automotivas foi a balança comercial, a balança da justiça social definitivamente não é o que mais importa à socialdemocracia brasileira.


A esquina, além de tomada pelos carros públicos e acidentados, contava com um bom número de pessoas curiosas (as quais somos chamadas de populares pelo jornalismo) e, na hora em que parece ter havido mais movimentação e chegou a formar-se um pequeno corre-corre, apareceu o que não poderia faltar: um cachorro. O cachorro era vira-lata, não acompanhava agente de segurança ou socorrista algum, a cidade baixa não é um bairro com número expressivo de vira-latas - o que mais se vê são cachorros domésticos presos às coleiras dos donos - mas asserindo o que é quase tão antigo quanto a própria tragédia o vira-lata emergiu com aquela capacidade dos cachorros de estar sempre em meio ao caos como que para ajudar em alguma coisa.


Assim que vi um jornalista agucei os ouvidos para saber do parecer "formal" do ocorrido visto que não havia vítimas fatais nem gravemente feridas, ao menos aparentemente. Se há algo que sufoca a jornalista que nunca serei, é essa incapacidade para panoramas técnicos ou mesmo essenciais mas que me escapam por sua materialidade incompatível com a abstração que me acompanha, enquanto eu observava bombeiros em ação, vizinhos que nunca havia visto no bairro e, principalmente o cachorro emergindo no caos, algumas pessoas a meu lado faziam uma análise perita sobre o lado do carro batido, a porta atingida, a umidade relativa do ar no exato momento da colisão, aliás, nem sei para que existem técnicos especializados nisso, vox populi, vox dei... Embora chegado por último imaginei que, aquele homem de mente perspicaz para o trato da notícia, com certeza arrasaria todo meu esforço tardio por apreender o que havia de mais concreto e lógico naquele choque, o brigadiano prontamente se dispôs a responder e eu estava a uma distância da qual ouvia perfeitamente:


- Nomes?

- Fulano, Ciclana, Mengano.

- Motivo?

- Provavelmente atravessou o sinal vermelho.

- Estado?

- Regular.

- Obrigada.


Pronto. A devassa ficou para o fotógrafo que por pouco não entrou na ambulância para registrar imagens até do tecido adiposo do socorrido. Me pergunto se é realmente de utilidade pública veicular três nomes que só dizem respeito às suas famílias e uma foto enorme da coisa, mas eu me pergunto tanta coisa... Fato é que aquela Pajero Full passa não só por cima de palha mas de um monte de outras coisas e é capaz de amassar fullpletamente outro carro. Fatídico deve ser sair com ela para qualquer outro país da América Latina, a etimologia para pajero é de domínio popular .


Utilidade pública mesmo é o relato de George Orwell sobre o período em que lutou nas milícias de defesa da república española durante a guerra civil. Apesar de certo preciosismo típico do inglês desconfio que também houvesse um esforço seu na apreensão total e racional dos fatos, mas não se torna forçado na forma - pior coisa que há é o distraído tentando dar uma de exato, um desastre. A ótima recomendação de Mário Maestri antecipou a pilha de leituras cedidas generosa e entusiasmadamente por Enrique Padrós, dois professores e historiadores cuja atuação extrapola as cátedras acadêmicas na produção e democratização de conhecimento.


O relato de Orwell é full. Franco pisou no povo espanhol como se pisa em palha. O capitalismo ficou nude perante o mundo.

Um comentário:

  1. Ana, mas que genialidade de relato... Lendo esse texto me vi curiosa, aflita, intrigada.. também ri , e por fim, terminei te admirando muito... que talento, mujer!

    ResponderExcluir