quinta-feira, 29 de setembro de 2011

ANAcrônica





Tenho à frente dois gatos. Há também um cachorro enorme e submisso (como é dos cachorros) que faz o impossível para puxar o foco. Diferente do cachorro – que acaba de colocar duas patas em cima de mim - os gatos estanques, no simples ato de respirar, existir, são algo...
Oscar Wilde achava que a beleza fala por si mesma, em si mesma, dispensa explicação.
Os gatos dispensam explicação. 

Minha história com “as belezas” começa quando começo eu. De meu pai lembro a partir dos 4 – foi quando minha mãe o arranjou pra mim, até hoje ela tenta convencer-me que nasci com essa idade -, mas a gata é remota, lugar-comum, não tenho memória consciente sem ela. O bicho não era exemplo de diplomacia, arisca e meio “pancada” um dia saiu correndo comigo atrás e camuflou-se na paisagem horizontal. Foi-se. Não sem antes parir oito filhotinhos e, haveria matado todos não tivéssemos levado dois e alguns arranhões.
Valentino ficou comigo, Bartolomeu tinha destino bucólico: a chácara de três priminhos e um tio Nando. Meu tio... Esse merece um parágrafo próprio. É um sujeito sem equivalentes, apesar de reservado, zela como ninguém pela veia cômica da linhagem. Quando nos vemos falamos de política – tio Nando me “insultava” desde bebê: comunista! Com 4 anos eu não sabia muita coisa, mas sabia que comunista era nome feio, e não é que praga dele pega?
Para evitar que Bartolomeu desse fim aos pintinhos, tio Nando amarrou ao seu pescoço um longo barbante de nylon, alegou que assim poderia brincar, comer, cagar, até amadurecer e acostumar-se com a ideia dos pintos, enfim,controlar seus instintos felinos. É, Bartolomeu não teve vida longa no campo. Segundo tio Nando, o tempo passou e Bartolomeu cresceu, mas a cordinha no pescoço dele não cresceu junto. O gato morreu asfixiado.  
A essa altura Valentino já me era inerente. Não fosse ele, os complexos freudianos seriam redimensionados, sempre vinha depois de presenciar alguma sessão de tortura física e psicológica promovida por minha mãe. Ficava bem grudado, aflito. Dizem os místicos que gatos sugam a energia ruim das pessoas, renovam o ambiente. Ele era imprescindível. Aos 5 almoçava lentamente, foi alguns anos mais tarde acompanhando meu pai ao trabalho, que aprendi o almoçar taylorista-fordista, até então não tinha pressa. Quando chegava à metade de um bife já estava gelado, difícil de mastigar. As pessoas começavam a sair da mesa mas eu tinha “orientação” para permanecer .
-Até terminar tudo, viu?
Era justamente quando a mesa dispersava que Valentino entrava em ação. Os pedaços de bife ultrapassavam a janela e: - Cesta!
Nossa parceria foi promissora e duradoura. Até o dia em que fui pega. Em pleno arremesso. Desconfio ter sido sistematicamente espionada até o flagrante. Sem crise, já tinha antecedentes, com 2 fui pega repassando sanduíche para um cão na festinha de aniversário da vizinha.  
À medida que Valentino crescia uma gata amarela desfilava pelo muro cada vez com mais freqüência. Ele fugia desesperado, se havia algo que temia era a loira. E por falar em desespero...  
Diego era branco, orelhudo e no Brasil foi inventado para seduzir criancinhas inocentes na Páscoa. Veio diretamente da casa da vizinha e, por trás daquela bola de neve, se escondia uma encrenca. Um verdadeiro presente grego. O coelho de Tróia. Enganaram-se os integrantes da família que o imaginaram macrobiótico, cenoura, alface, comedido.
Diego era uma máquina de destruição em massa. Não havia nada na casa em que não houvesse afundado os dentões, brinquedos, sofás, dedos. Diego era visceral, para ele qualquer material era passível de experimentos, inclusive as botinas de couro do meu pai que faziam parte do uniforme de operário. Havia as botinas a.D e d.D, as botinas depois de Diego tinham arejamento nos dedões. Meu pai ficava mais perplexo do que puto.
Diego comeu tudo, só não comeu o gato, era um fenômeno. Naquela época ainda não era dentuça, mas já devia ter cara de Diego, sempre o xingavam olhando pra mim. Não sei quanto tempo ficou conosco mas o fim da samambaia de minha vó foi o tempo necessário. A planta gigantesca era um dos orgulhos dela. Diego foi comendo pelas beiradas, foi um trabalho in process, até o dia em que teve ausências suficientes para completar o serviço. Não tenho na memória registros do coelho depois desse episódio.
 Claro que minha infância não foi só gatos, coelho e formigas (essas não cabem na crônica) também tive uma escassa vida social. Mas não era sempre que estava disposta a cultivá-la.
Convenhamos que às vezes as outras crianças são muito chatas. Um exemplo categórico era minha vizinha Ana Laura. Numa daquelas tardes em que eu estava no “efeito ostra” bateu à porta querendo brincar, não havia desculpa que a espantasse. E como encheu... Foi pensando em algo mais convincente que olhei para aquele ser e tive uma passagem maquiavélica. Aproveitei que estava em vantagem e fiz exigências:
- Mas de esconde- esconde.
- Ta!
- Lá na tua casa.
- Ta!
- Tu conta.
Deve estar me procurando até hoje. Ana Laura não tinha chegado nem ao número cinco e eu já adentrava no 1149 da rua Silván Fernandez : – Vó, tu nem me viu hein!
Com 8 recém feitos veio a mudança - de país.

Ser arrancada de minha vó e Valentino foi a primeira injustiça irreversível que conheci. Não precisava. Valentino não demorou muito para abandonar a casa, minha vó tardou um pouco mais. Até hoje ela especula que Valentino trocou a espera de mim e o medo dela, pela companhia da gata amarela.
 Novembro 2007

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