sexta-feira, 16 de março de 2018

Estado ausente, Marielle presente


- Moço. o T5 está parado pegando gente há 5 minutos. A parada extrapolou com pessoas esperando por ele, a frente do prédio que fica ali estava tomada a ponto de obstruir o acesso dos moradores, agora os outros coletivos não conseguem avançar e o T5 está abarrotado de gente, como um caminhão de galinhas.

- Em quem a senhora votou?

De maneira torta, o agente da EPTC, cuja vocação deve ser qualquer outra que não servidor público, exprimiu o tom que caracteriza nossa atualidade política e econômica. A tarefa do agente era me responder, na dimensão em que pudesse, o motivo daquele caos e sobre uma possível supressão na tabela horária daquela linha e não fazer pesquisa de boca de urna para saber se votei no crápula que está deixando a cidade à míngua. Mas a resposta dele dá conta apenas do espírito mesquinho do momento político-econômico em que atitudes e respostas polidas e conciliatórias dão lugar à crueza da transferência da culpabilidade aos prejudicados, como neste caso, mas não dá conta da necessidade material e objetiva do momento, a resposta, por diversificado que fosse o nome, não seria uma solução. A retórica curiosidade "sem filtro" do meu interlocutor está aquém porque qualquer nome que não proponha um programa radical de ruptura do sistema está aquém.

Sob uma crise econômica que assola a América Latina - depois de um período no qual os mais empobrecidos foram, com prazo de validade fixado pela óbvia oscilação das commodities, elevados a certa dignidade no consumo de bens supérfluos ou mesmo imateriais (como o ensino superior no caso brasileiro) - o Brasil viu, mesmo ante a fumaça densa da ideologia que vela a luta de classes, as classes dominantes, patrões e capitalistas autóctones ou não atacarem o povo brasileiro (mesmo uruguaya sei que sou mais brasileira que qualquer explorador nascido aqui) por todos os lados, financiando, compondo ou pressionando governos como sempre fizeram, desta vez numa velocidade alarmante. Então, através da política, temos nossos direitos trabalhistas solapados e, através da política, nosso transporte público é tratado como bem privado e, através da política vemos a capital afetiva do Brasil ocupada pelas forças armadas de um Estado que só atua nessas duas esferas: a apropriação do público para endereçar ao privado e policial para garantir a primeira operação.

Para uma cornucópia de problemas ocasionados, por um lado pela ausência de Estado quando se trata de garantias constitucionais essenciais à dignidade humana e, por outro, pela ocupação desse vazio por facções tão criminosas quanto as que parasitam a máquina pública, o governo federal ilegítimo com seu mandatário sabidamente chefe de quadrilha e sob investigação, determina ocupação militar de uma cidade cujo funcionalismo foi levado à fome por seus "gestores" e antecipa a repressão a possíveis protestos sociais e detêm o poder de ir e vir de seus cidadãos pobres, para garantir o direito de ir e vir de seus cidadãos de bem e de bens respingados pela barbárie em que está atolado o Rio de Janeiro. Nessa conjuntura Marielle, defensora dos direitos humanos de todas as classes, vereadora pelo PSOL, relatora da comissão que apura abusos policiais nas comunidades ocupadas do Rio, é assassinada.

É justamente renunciando à fórmula tosca e populista de reduzir a violência urbana a um duelo entre "cidadãos de bem desarmados" e "marginais armados" que o PSOL já viu seus dirigentes/representantes públicos ameaçados de morte e, no caso de Marielle, o ato sem aviso prévio, levado às últimas consequências.

Em Porto Alegre o crime organizado não pauta todas as esferas da vida social como no Rio de Janeiro, mas nossa militância e parlamentares combatem politicamente máfias nem tão políticas que determinam, por exemplo, um dos aspectos mais importantes da cidade. O transporte "público" da cidade é gerido numa articulação de várias instâncias cujo objetivo é atender as demandas dos mandarins do "setor", o prefeito e sua ala de vereadores, o Sindicato dos Rodoviários e uma maioria dentre os conselheiros do COMTU (Conselho Municipal de Transporte Urbano) a serviço dos transportadores, cuja reunião para aprovação do último aumento terminou em pancadaria.

Dia após dia depois do aumento, vejo as pessoas perplexas na roleta questionando os cobradores, poucos dentre estes numa postura humilhante defendem o patrão argumentando sobre o aumento da gasolina, outros dão respostas como as do agente da EPTC, o fato é que quando se pergunta o que acontece com os ônibus depois de um certo horário a desculpa é o crescente número de assaltos aos coletivos, o que me lembra um texto de Bertolt Brecht no qual o "Sr. Schmitt" era mutilado à medida que seus membros doíam até ficar reduzido a nada. Temos supressão de horários nas tabelas e ônibus em péssima manutenção (como é o caso da zona leste) e pagamos a passagem mais cara do país, a cidade está se ausentando onde deveria estar presente e quando se faz presente é para transferir os custos da crise econômica à maioria da população.

O que Marielle tinha além da coragem, do fato de ser mulher, da Maré e negra o que a colocava em todas as possibilidades de enfrentamento inconsciente e, em seu caso, consciente? Marielle não só tinha como tem programa, um programa de ruptura com o sistema político privatizado por facções com siglas de partidos, um programa por mandatos revogatórios, um programa de radicalização da participação popular nos âmbitos decisórios da vida política, um programa de suspensão do escoamento da riqueza produzida pelo país via "dívidas" interna e externa, um programa de desmilitarização das polícias, um programa feminista, ecossocialista, anticapitalista. Marielle presente significa para o partido defender a todo custo seu programa fundacional e suas candidaturas programáticas e significa que a "unificação da esquerda" tão abstrata na prática é justamente o presente que Marielle deixou a este campo social: a defesa de uma luta radicalizada, de ruptura com os donos do poder e suas milícias.



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