sexta-feira, 14 de junho de 2013

"Isso não representa o movimento"


A frase acima foi improvisada em cartaz fixado no que restou de uma fachada de vidro de uma das agências bancárias atingidas ontem durante o protesto contra o aumento das passagens em Porto Alegre.

Deixei meu trabalho como garçonete às 20h numa corrida contra o tempo para protestar contra o aumento. Meu grande elogio à comunicação, a escassez de meios de comunicação, me fez seguir sem saber de imediato para onde ia, o ato havia começado um par de horas antes. Parei junto a uma viatura da EPTC e perguntei ao agente de trânsito a localização da manifestação "contra o aumento da passagem" naquele momento: - Não moça, não é contra o aumento, é em apoio a São Paulo...

Eu adorei a pretensa correção pois já houve tempos em que agentes e policiais monitoravam e reprimiam protestos sem saber direito o porquê e lhe agreguei: - Contra o aumento aqui, que pode ser decidido no judiciário e contra o aumento em São Paulo. Me foi informada com detalhes a localização da marcha e voei para a avenida Borges de Medeiros.
A meu lado iam outros cinco atrasados para o ato, todos brigadianos.

Rua tomada, trânsito trancado, eis um dos problemas desta cidade. O direito de ir e vir é algo tão abstrato e tão concreto, tão simples e tão complexo que para conseguir refletir sobre ele tenho que recorrer a discriminações do tipo: como se vai e como se vem, com quem se vai e com se volta e até onde se vai... Quando uma manifestação tranca uma via é com o deliberado propósito de chamar a atenção pública para alguma causa e o decorrente congestionamento do trânsito é uma maneira de fazer o problema chegar à sociedade.O que pouco se reflete é que no caso em questão impedir o direito de ir e vir de veículos por três ou quatro horas chama a atenção para o direito de ir e vir das pessoas o ano inteiro pois ter ou não ter o valor correspondente à tarifa é o que vai determinar esse direito numa cidade com longas distâncias como esta. Não faz uma década que caminhei de Viamão (conhecida como uma das "cidades dormitório" pelo fato das pessoas trabalharem na capital e voltarem a ela apenas à noite) até o centro de Porto Alegre para buscar trabalho já cansada de incomodar os cobradores da Carris que, sempre solidários, permitiam minha viagem clandestina. Se o preço da passagem não é uma obstrução do direito de ir e vir da massa trabalhadora eu não sei o que é.

Algo menos aparente mas nem por isso menor sobre o direito de ir e vir é o modus operandi desta ação... Milhares e milhares de automóveis particulares com capacidade para cinco pessoas, boa parte das vezes portando apenas uma, obstruem diariamente as ruas das capitais brasileiras, a pessoa está lá no ônibus já contrariada de ter que pagar caro para viajar em pé, esmagada, depois de ter aspirado muita fumaça durante um longo período na parada e se depara com a tranqueira. Além de obstrução da via pública, o modelo consumista, automobilístico que sustenta governos e mídia constitui-se numa violência sanitária - psíquica e fisiológica - contra cada indivíduo.

Quando a mídia - que chama de "liberdade de expressão" seu monopólio de expressão - veicula que manifestações populares"prejudicam" "àqueles que nada tem a ver com a situação" prejudica a inteligência dos espectadores que devem saber: neutro só o sabonete, a neutralidade para o ser social não existe. Aqueles que, por ingenuidade ou por perversão, se abrigam sob a máscara da neutralidade mais cedo ou mais tarde responderão por este ato. Discriminando, o lado ingênuo: a maioria da população, o lado perverso: a imprensa da minoria.

A certa altura da manifestação encontrei um dos rostos mais bonitos que já vi, tapado. Se minha amiga de mais de uma década não tivesse me abordado, não a teria reconhecido ao passar. Lhe perguntei sobre o lenço cobrindo a face e me argumentou ser uma defesa contra a espionagem da polícia que tem como prática invasiva registrar de todas as formas todos os indivíduos dos protestos que realizamos desde sempre. Marchamos debatendo a eficácia ou não desta "defesa' contra a intrusão policialesca, eu sempre me senti mais protegida mostrando a cara, porque fazendo isso não sou mais uma "mascarada" a qual facilmente a mídia demoniza, sou a colega de trabalho, a vizinha que dá bom dia, que no posto de saúde está parada na fila. Foi em aumentos anteriores da tarifa, que quando viu minha cara na tv sendo detida pela polícia a Rita, mãe da Carol, se levantou lá na Lomba do Pinheiro: - A Ana ninguém deixa presa! Foi ontem, quando voltava da manifestação que um garçom do bar da esquina - o qual nem frequento - me para: - Se a polícia te prendesse a gente ia lá te defender. E isso com essa cara, imagina com a cara da minha amiga...

Quando cheguei na rua da Cidade Baixa na qual moro como doméstica, me deparei com alguns vizinhos comentando sobre o rumo derradeiro da manifestação da qual grande parte dos participantes havia se despedido. Danificação de um veículo particular e muitas pichações de casas do bairro. Eu realmente acho que mais cedo ou mais tarde as pessoas terão de parar de fingir que os problemas da cidade não as envolvem direta ou indiretamente, mas esta hora, violenta ou não, não deve ser por decisão de um ou outro indivíduo que falta com respeito ao patrimônio público desta cidade tanto quanto a prefeitura, patrimônio que não é a vidraça do Paço, nem a agência do Bradesco, nem a loja da Oi, o verdadeiro patrimônio público de Porto Alegre são as pessoas. Não confundir com as pessoas da Ana Amélia, "as pessoas" para o PP só tem um sinônimo primeiro e último e é "os latifundiários".

Indignada com toda agressão mal paga por parte da polícia e toda agressão gratuita por parte de quem atua em desacordo com o coletivo, eu insisto, "isso não representa o movimento" tanto quanto o prefeito desta cidade não representa seu povo.

2 comentários:

  1. Gostei, Aninha: "(...)'liberdade de expressão' seu monopólio de expressão".

    Essa mesma mídia, aliás, sentiu na pele: não-sei-tantos repórteres da Folha (até a Folha!) apanhando, bala de borracha no olho inclusive, jesus...

    A fascistização está aí, só não vê quem não quer.

    Mas venceremos. "Ousar lutar, ousar vencer", até a vitória sempre :)

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  2. Querida Ana,

    É sempre um prazer ouvir teus acordes consequentes.

    O "movimento" é espontâneo e tentativo, está aprendendo. Mas o crescimento da reação na orquestra destrambelhada das classes mais abastadas, regidas pelo maestro "big-imprensa" anda tocando um arranjo muito ruim de "Samba de uma nota só", ao ritmo de trilha de filme do Schwarzenegger... "Vândalos!" "Baderna!" "Caos!" Claro que não grita quando, com a anuência de governantes, empresários corruptores vandalizam o erário público, badernam o estado de direitA e lançam ao caos quem não dance por sua música.

    Tomei um susto ao ouvir na Voz do Brasil (sim, eu escuto!) que estão debatendo uma lei "anti-terrorismo" para o país MISTURADO com comentários sobre essas manifestações. Como assim? Pensei estar alucinando... um deputado conseguiu eomcntar que as duias coisas não tem nada a ver, mas essa lei é (como parece ser) uma clonagem da legislação norte-americana, por eles orientada, não se surpreendam na hora de definirem o alcance da ripa sobre nós todos, QUALQUER insatisfação manifesta vire "ato de terror". Terrorismo fazem os jornalistas, alarmistas, manipuladores, canalhas! (se bem que agora a Folha mudou momentaneamente o tom depois que 7 jornalistas deles apanharam e levaram bala de borracha: justiça divina ou sacrossanta pedagogia da realidade?). Preocupa-me o crescimento de uma mentalidade intolerante e fascista (até lei antiterror estamos "discutindo"!!?!!??), que é sempre conduzida/induzida/promovida pelos barões do pensamento único, a mídia.

    E olha que estes atos públicos primam pela desorganização: alguns atos de vandalismo são descargas espontâneas do tanto que temos represado, pode-se compreender, mas não me surpreenderia se boa parte deles fosse fruto de infiltrações deliberadas. É o que está emergindo nesse ensaio de coro rebelde (que, espero, continue!), e é o máximo que temos por ora, pois a maioria tem de reaprender a reivindicar, haja visto a perda das tradições de luta neste Brasil eivado de pelegões e peleguinhos.

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