Trecho do texto Galileo Galilei
Há um bom tempo não conseguia aplaudir em pé uma peça de teatro no São Pedro. Admito, vejo pouquíssimo teatro, é mais fácil me encontrar no Teatro atrás de uma Filarmônica, costumo me irritar menos quanto menos entendo da matéria. Minha estreia como espectadora neste Porto Alegre Em Cena foi com um péssimo espetáculo num ótimo teatro,Attends...(Pour mon père) no tearo da Santa Casa, se bem que o relativismo da física se aplicaria à experiência, tenho certeza que teria sido menos ruim se a expectativa e o valor do ingresso fossem mais baixos, seria bem menos ruim se ao final do espetáculo não fosse regado a aplausos entusiastas e ufanistas, um espetáculo sempre pode melhorar por mais lugar comum que seja, um artista sempre pode melhorar por mais canastrão que seja, mas se o termômetro é um público que reverencia como maravilhoso algo de qualidade questionável pouco pode avançar.
Não é nada vantajoso uma artista como eu criticar o público, mas Denise Fraga colocou um samba- enredo no palco do TSP e minha cabeça foi a única a pipocar na plateia... Não deve parecer adequado se empolgar num teatro projetado nos moldes da arte burguesa. Luciano Alabarse costuma aconselhar o público a não tossir, Bertolt Brecht aconselhava o público a fumar charutos e agir como se estivesse numa luta de boxe. Concordo com os dois, dependendo da obra, desaconselho que as estruturas fixas determinem o comportamento das pessoas, quando um carnaval avança no Teatro São Pedro ele é mais sagrado que as paredes que o contém...
Galileo Galilei foi astrônomo, físico, matemático e filósofo no tempo em que tudo isso era mais ou menos a mesma coisa, seguiu a linha copernicana, colocou o sol no centro do universo e desaconselhou as estrelas fixas de Aristóteles. Galileo Galilei é o genial texto de Brecht e sua interpretação e fantasia sobre o cientista. Com sua luneta, Brecht aumentou um aspecto da trajetória do astrônomo: a ética de sua abjuração. A existência e suas contradições intumescem o Galileo do dramaturgo alemão no magro corpo da atriz brasileira. Ele não inventou a luneta, mas a melhorou a fim de aumentar seu salário na universidade, ele deve ao leiteiro porque gasta em livros, ele pensa melhor se come foie< ele abjurou perante o Vaticano para ficar vivo, para continuar pensando...Ela é atriz da Globo e faz teatro dialético melhor que o Berliner Ensemble.
Teatro brechtiano tem padrão: panfletagem com as músicas da peça, música ao vivo, cartazes elucidando o tema central da cena, enfim, uma série de artifícios que o confrontam com o teatro aristotélico - uma das maiores estrelas da astronomia italiana e uma das maiores estrelas da dramaturgia alemã destinaram sua vida a brigar com Aristóteles, este deve se achar o centro do universo... A teoria e o método de Galilei trunfaram, mas a todo momento, com muita grana e interesses de mercado, novas descobertas são feitas, a teoria e o método de Brecht disputam hegemonia no teatro, mas com ou sem grana e mercado precisamos fazer novas descobertas.
O que há de mais aristotélico no teatro brechtiano, a alma da coisa, a montagem de Cibele Forjaz e o ótimo corpo de atores que contracena com Denise tem: esse fazer teatro com prazer, como quem conversa, esse estar em cena sem dar-se tanta importância, afinal, não somos o centro do universo. Os figurinos do elenco em geral são mais realistas que criativos, mas imponentes e ajustados a cada personagem ou gestus social apresentado, os de Galileo com algum recurso interessante não são nada que não se tenha visto antes, mas um fermento que intumesce essa costura de voz, postura e arrebato, que compõem o Galilei de Fraga.
A inferiorização das mulheres propagandeada por Aristóteles, conservada por Galilei e não superada por Brecht, foi posta em cena em muitos momentos com a latejante violência que permeia as relações de gênero cotidianas naturalizadas, sem o foco crítico que podem ganhar num teatro. A superação feminista desta montagem de Galileo para mim não é sequer o fato de uma mulher representá-lo mas seus bastidores, a vontade de uma mulher, o poder de uma mulher que escolhe um texto como Galileo Galilei e decide interpretá-lo, a direção ser atribuída a outra mulher. Há uma grande diferença entre uma mulher encenar como protagonista e ser a real protagonista com uma direção feminina.
A questão central da peça de Brecht e Fraga é a ética. A eficácia de guardar ou alardear uma verdade, os interesses privados para os quais serve a humanidade coletivamente, as garantias individuais versus as abnegações do altruísmo. Galileo Galilei ainda sentia o cheiro da carne de Giordano Bruno queimando na fogueira enquanto respondia à Santa Inquisição, no texto ele capitula para continuar a desenvolver suas teorias e salvaguardá-las do poder repressor, ele retrocede um passo para avançar 2², mas atenção, essa é a exceção, quase sempre costuma ser traição.
Por um momento me distraí e quando voltei os olhos para o palco me deparei com algo que parecia ser uma injeção discursiva de petismo na obra, peruas louras batendo panelas reclamando a falta de empregadas, GRANDE ENTUSIASMO E APLAUSOS EFUSIVOS DA PLATEIA. Eu me sinto representada pelo sarcasmo da cena e, apesar de aplaudir o que me dá na telha, em tempos de dualismos pouco dialéticos esses aplausos podem significar aplausos à presidenta e não só à Galileia. O gestus social de parte do estrato societal que profere determinado discurso cujo sarcasmo enfatiza tal aspecto do estrato com o qual conflita interessa ao teatro brechtiano, interessa a nós do Núcleo As Brechtianas que em 2016 estreamos na cidade a peça inspirada em textos de Bertolt Brecht e de George Orwell: “DIALÉTICA DA CORAGEM: Duas mães de seu tempo e um soldado atemporal”. Conseguir o palco do TSP já são outros quinhentos, sem grana para comprar no mercado a luneta cujo escopo é o globo...
Depois de duas horas e vinte de espetáculo o teatro aplaudia em pé como é de costume, desta vez eu estava feliz e aplaudi mais, aplaudi efusivamente o cientista Galileo Galilei no qual Bertolt Brecht personificou seu ode à razão e do qual discordo efusivamente pois para todo rebelde também é necessária falta de juízo e o direito ao delírio que escapa à razão, mas aplaudia também outro cientista no qual é personificado o ode ao delírio e à falta de juízo na mais profunda estreiteza do científico, estava ali, na plateia bem pertinho, Jorge Quillfeldt, mi hermanito.
Iaí Ana! Só porque o título, os questionamentos sobre o PoA em cena, e a questão da ética contemplam meus dias atuais, quis deixar meu comentário. Vejo que de uma forma ou de outra meus pensamentos nunca partem só de mim, e, uma vez em mim, repercutem nos assuntos dos amigos, sem que eu saiba bem onde tudo começa. Já fazem alguns meses que não nunca sei se vou comer no dia. Normal virou comer dois dia sim e um não. Trabalhar exige cumprir ordens e horários, o que exige sacrifício, e, por ultimo, uma boa dose de recalque. Vivemos em uma sociedade recalcada e repleta de desejos ilusórios, compensatórios, justamente por não termos permissão pra sequer comer e beber o que a natureza dá de graça, quanto mais viver apenas pelo exercício da vontade. Galileu e Brecht não poderiam ter superado a inferiorização das mulheres, justamente porque a capacidade de mentir, simular e/ou recalcar é a lei ventral do ambiente acadêmico, seja cientifico, seja nas artes. E se isso não fosse verdade, a questão da ética nem surgiria. E a que preço? Vence sempre quem sabe engolir o maior sapo, enquanto pessoas simples, e puramente sinceras, embora raras, não podem sobreviver na academia, no mercado, e frequentemente nem na própria vida. Abraço!
ResponderExcluirO João Zabaleta aí é um dos mais promissores músicos que conheço. Quando escrevo sou sempre movida a música, quando não possuo meios para escutá-la está em minha cabeça, sempre me alavancando...assim como me alavancam muitos amig@s que engolem sapos enormes mas me ajudam inclusive financeiramente para eu não ter que engolir os mesmos sapos...às vezes ficamos mesmo sós João e sobrevivemos."Vamos pedalenado contra el viento detrás de las olas". Beijo grande
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